* N° 0890 - HISTÓRIAS DE MANGUE - SÉRIE: CONTOS FANTÁSTICOS DE MAYANDEUA

 


Caminhava pelo manguezal, só com a lua como testemunha e a velha lanterna na mão, quando o som veio, seco e rápido. Vixe Maria!"O coração disparou. Era madrugada, as três da manhã, e o silêncio fazia ecoar cada passo, cada folha quebrando sob meus pés. O cheiro de lama molhada era intenso, e o ar, denso, se movia lento ao redor. Ypetu, você ouviu isso?"perguntei, com a voz falhando.

Eu sei lá o que foi isso! respondeu Ypetu, o amigo que me acompanhava na jornada. Será o bicho-papão, matinta?". Rezei outra Ave Maria, na esperança de que fosse só o vento. Mas não. Outro som, mais forte desta vez, rompeu o ar. Vixe Maria... O que é isso de novo?", murmurei, suando frio. "Ypetu, será que é coisa ruim? Um macacão talvez..."

No ar, o mistério ganhava corpo. Uma grande interrogação pairava acima de nossas cabeças, como uma sombra invisível, pulsante. Estávamos no coração do manguezal, rodeados pela escuridão, e a lanterna piscava, lutando para se manter viva. O querosenes estava no fim, e o facho de luz se tornava cada vez mais fraco. O medo começava a pesar, assim como a lama que agarrava nossos pés.

De repente, um novo som, mais perto, como algo deslizando pela lama. "Vixe Maria, será que é assombração?" Yvenes, que até então estava quieto, deu uma risada curta, talvez para tentar afastar o medo. "Que nada, deve ser só um caranguejo entrando naquele buracão." Suspirei, tentando acreditar nas palavras dele. Mas o mangue é traiçoeiro. À noite, ele guarda segredos, vozes de encantados, histórias que o povo esqueceu. 

Continuamos andando, os pés afundando cada vez mais. O som da água, as folhas se mexendo, tudo parecia vivo. E, de repente, um estrondo! Um barulho que fez a terra tremer. O chão quase se abriu sob nossos pés. "Vixe Maria, agora é sério! Esse é de encantado, Ypetu!"
O vento soprou mais forte e, em meio à névoa que começava a se erguer do chão, a figura apareceu. Não era bicho, nem gente. Sua pele brilhava como prata, e seus olhos, profundos como o oceano, nos encaravam. O silêncio se tornou pesado. Ninguém ousava se mexer.

Ypetu começou a recuar, as pernas tremendo como nunca. "Você está vendo isso também, né?" perguntei, com a voz quase sumindo. A criatura se aproximou, os pés mal tocavam o chão, como se estivesse flutuando. E, antes que pudéssemos reagir, uma risada ecoou por todo o manguezal. Era grave e ao mesmo tempo suave, como se fosse uma brisa zombando da nossa coragem.

"Vocês ousam atravessar meu domínio sem permissão?", a voz soou em nossas cabeças, mas não vimos sua boca se mexer. "A noite é minha, e vocês, meros mortais, não deveriam estar aqui..." Tentei correr, mas os pés estavam presos na lama, como se algo invisível nos segurasse. Ypetu caiu de joelhos, rezando baixinho, mas eu sabia que não havia prece que pudesse nos salvar agora.

A criatura, ou o espírito, estendeu a mão e, com um movimento lento, desenhou um símbolo no ar. Uma luz fraca e esverdeada começou a brilhar ao redor de nós. Senti a lama nos pés se dissolver, como se estivéssemos afundando lentamente no chão. "Por favor...", murmurei, sem saber se falava comigo, com Ypetu ou com o ser diante de nós. "Eu sou o guardião do manguezal", a voz continuou, "E vocês violaram minhas terras. Agora, terão que pagar o preço." Então, tudo ficou escuro. A lanterna finalmente se apagou, e o som do mangue voltou, mais alto, mais próximo, como se o próprio ambiente estivesse vivo, respirando ao nosso redor.

Sentimos um puxão, e quando abri os olhos, estávamos no meio de uma clareira, iluminada pela lua cheia. O guardião havia desaparecido, mas sua presença ainda era palpável. O silêncio retornou, mas sabíamos que não estávamos mais sozinhos. Algo nos observava, esperando, talvez rindo da nossa ousadia. "Vixe Maria...", sussurrei de novo, com o coração ainda disparado."Será que a gente sai daqui vivo?" Ypetu olhou pra mim, com os olhos arregalados. "Eu só quero ir embora daqui...", disse ele, enquanto lentamente começávamos a recuar, sem tirar os olhos do lugar onde o guardião havia desaparecido.

E, assim, voltamos ao caminho, rezando baixinho, esperando que fosse só mais uma lenda da noite. Mas sabíamos, no fundo, que algumas histórias nunca são apenas histórias.

- Coisas de nossos manguezais!


FIM

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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0890


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