*Nº 0817 - MEMÓRIAS DE UMA CAÇA - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
Adaptação de um velho poema....
Caro Senhor Exterminador,
Escrevo-lhe da cidade onde a eternidade se encontra com a efemeridade, onde as baratas são protagonistas de um espetáculo diário de sobrevivência e audácia. Ao longo das primeiras horas do dia, uma barata de antenas volumosas se solta pelo apartamento alugado, desenhando trajetórias entre a estática e a pressa, numa coreografia inesperada que nos surpreende a cada passo. Imagine, caro exterminador, a cena que presencio: uma pia lotada de fragmentos e a barata que voa, respirando o mesmo ar denso deste apartamento, onde suas travessuras transformam o ambiente em um banquete de inquietação. Seu voo rasante incomoda o paladar e sacramenta a palavra sujeira. A aventura dessa barata a leva a esconder-se das esfomeadas companheiras, preferindo os copos com pequenas doses de vinho, um sumo das vivências do homem e suas crises.
Ébria das pias de apartamento, a barata realiza um espetáculo singular, com o homem como testemunha do ócio da manhã de segunda-feira. Chinelos e sapatos preparados, a caça matinal começa. A barata voa de novo, suas acrobacias enfeitam a derradeira hora. Cai sobre a pia novamente e, em um ato final de sua trajetória, é esmagada. Nos detalhes da sola do sapato, ficam as antenas e outras coisas mais, uma lembrança visceral de que ali, na pia do homem caçador, havia uma vez uma barata de apartamento. E vem o pensamento: o que as baratas mais odeiam? Os inseticidas ou os sapatos do homem, assassino de baratas? De uma coisa tenho certeza: as baratas adoram as mulheres, quando se enfrentam já sabemos!
E mais uma aparece. Este apartamento deve pertencer à plebe “baratal”. Mais uma é morta e, do mesmo ralo da pia, há de sair outra para invadir o mundo das sobreviventes. A vida continua, caro exterminador. Oremos pela finada barata. De pernas para o ar, a barata deve gemer de dor ou rir da grotesca cena que o homem cria. A perseguição continua! Asas despedaçadas na pia do homem caçador. Entre as ferramentas do seu ofício e as asas fragmentadas, existe um cenário que ultrapassa a simplicidade do ato de exterminar. É uma dança de vida e morte, onde cada barata abatida se torna um capítulo na história desse apartamento.
Por isso, senhor exterminador, deixo-lhe esta crônica, uma carta que celebra a resistência e a efemeridade das baratas, e a persistência incansável do homem. Que suas técnicas modernas tragam alívio aos lares e que a paz, tão desejada, chegue às manhãs de segunda-feira, onde o ócio possa ser contemplado sem a ameaça das antenas volumosas.
Com respeito e expectativas, aqui, direto de Mayandeua, escrevo-te mais esta missiva.
Primolius.
FIM
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Projeto Musical e Literário Primolius N° 0817