* Nº 0378 - ORGÂNICA PRIMAVERA - SÉRIE: CRÔNICA DE MAYANDEUA
O Pensador de Nuvens caminhava pelas ruas do Norte, imerso em devaneios. Seus passos ecoavam nas pedras portuguesas enquanto o céu, despido de nuvens, se estendia infinitamente à sua frente. As cores e os sons ao redor pareciam desvanecer-se no horizonte, e seus sonhos, outrora vívidos, agora lembravam vitrines de liquidação: desgastados, sem brilho. Ele andava com firmeza, mas já não havia naqueles passos a elegância que um dia lhe era característica. Um cachorro aproximou-se, lambendo seus sapatos como se quisesse trazer algum conforto ao homem perdido em pensamentos.
A tarde caía, e os pensamentos do cidadão dilaceravam sua alma e felicidade. A primavera, geralmente tão generosa com seu perfume, parecia negar-lhe qualquer resquício de beleza. Talvez, refletia ele, a essência da vida para muitos não fossem as flores. E naquela cidade cinzenta, não choviam sentimentos, apenas metáforas.
O paraense, senhor das nuvens de formas bizarras, começou a sorrir timidamente para a noite que se aproximava. Diante das janelas televisivas, deflagrou sua ganância, rendendo-se às ilusões de felicidade projetadas nas telas. Tudo parecia mais claro naquele início de servidão tecnológica, onde propagandas incessantes prometiam mundos perfeitos para pessoas igualmente perfeitas. Em seu estado de convalescença mental, neutralizado pela herança do egoísmo, ele lembrava do trabalho, das contas vencidas e das escolhas que o levaram até ali.
A noite avançava, e o vivente buscava renovar suas forças. Seus compostos orgânicos — líquidos e sólidos — enriqueciam a farmácia da esquina, num ciclo interminável de consumo e exaustão. Ali, naquele lugar, era um paraíso para as vitrines obesas, repletas de produtos destinados ao cidadão feliz que comprava o que não precisava. Enfim, o homem retornava para sua cama, meditando sobre suas próprias nuvens indecisas e sem forma. Do céu, um avião cortava o silêncio, destruindo a frágil paz de seus pensamentos.
No fundo, aquele homem sabia que nunca deveria ter saído de Mayandeua.
FIM
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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0378