* N° 0258 - CARTAS “MAREMADAS” - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
Ao poente, o sincronismo dos pensamentos revela-se como uma dança entre o querer e o não poder. É nesse instante de entrega à Rosa dos Ventos que as palavras ganham forma, como embarcações solitárias e apressadas, carregando memórias que nunca vivi. Vagando por onde não fui, elas subtraem a realidade, erguendo dunas inacabadas entre as águas e deixando rastros de algo que poderia ter sido.
Na linha tênue entre as ondas e o céu, o solo gentil começa a surgir, prometendo porto para aqueles que ousam esperar. Por entre as ondas, outros perfumes se misturam: o aroma salgado dos peixes, asilado em lembranças que clamam por uma pimenta de cheiro. Esses cheiros e sabores, tão vivos na memória, ressurgem com a força de relâmpagos e o balanço de marés inquietas.
A cada solavanco, as palavras que antes estavam presas encontram um caminho de volta. Ressurgem da boca como sussurros carregados de queixumes, carregando consigo os chorumes do tempo – resíduos de sentimentos que o mar traz e leva, como se fossem parte do ciclo eterno. E enquanto o vento, o tempo e o mar orquestram suas sinfonias, os que aqui estão encontram uma espécie de paz, mesmo que temporária, mesmo que incompleta.
No chão, espalham-se cartas nunca lidas, pedaços de histórias que ficaram pelo caminho. Entre os pontos e as vírgulas, mora a culpa de não ter feito, de não ter dito, de não ter vivido plenamente. Na esquina de alguma cidade qualquer, onde o cheiro de maresia nunca chega, milhares de máscaras falantes ocupam as ruas, rejeitando o sabor das ondas e a verdade que o mar sussurra.
E o mundo lá fora, longe das águas, enfrenta um rei invisível, uma força silenciosa que desafia os alicerces do cotidiano. Nesse mundo de terra firme, as maremadas continuam, subtraindo histórias, silenciando cartas jogadas ao mar. Mas o mar, indiferente ao caos, mantém seu ciclo, entregando suas ondas à Rosa dos Ventos e seu murmúrio à estrela diurna que o guia. Mayandeua, escrevo-te esta: és testemunha silenciosa de tudo. Tuas raízes entrelaçadas ao chão e tuas águas acolhedoras guardam segredos de quem chega e de quem parte. És a guardiã de palavras nunca ditas, de cartas perdidas, de memórias que o vento carrega. És o equilíbrio entre o que é dito e o que permanece no silêncio, entre o que é vivido e o que se sonha.
Ao poente, enquanto os barcos continuam chegando, suas velas se erguendo contra o horizonte, eu observo. A maresia acaricia e, por um momento, a exatidão do tempo, do vento e do mar me alcança. A cada onda, um novo verso; a cada estrela que desponta no céu, uma nova promessa. Mayandeua, entrego-te meu pensamento, minha escrita, minha história – para que a guardes, para que a transformes, para que a leves, por onde quer que as águas te conduzam.
- A chuva cai no horizonte...
FIM
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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0258