* Nº 0946 - ASAS DO TEMPO - SÉRIE: CONTOS FANTÁSTICOS DE MAYANDEUA
Cada borboleta, em suas asas, carregava a esperança intrínseca de que a beleza, mesmo acorrentada, detinha o poder de transformar o mundo. Artistas não por escolha, mas por necessidade, encontravam na criação a força vital, o propósito que as mantinha em movimento. Enquanto a garrafa, à mercê das ondas, tombava incessantemente, elas se dedicavam a adornar seu confinamento, impregnando as paredes de vidro com as cores que emanavam de suas próprias asas: o azul celeste da bonança, o amarelo vibrante do alvorecer, o vermelho pulsante da vida que se recusa a extinguir.
Engolida pelo oceano, a garrafa seguia rumo a um destino incerto, enquanto as borboletas continuavam sua obra silenciosa. Transformando o impossível – a criação de beleza em meio ao confinamento – em sua mais natural expressão. Intuíam que o mundo exterior, vasto e imprevisível, era palco tanto de tempestades quanto de bonanças, mas, dentro daquele pequeno universo, o controle lhes pertencia. Ali, podiam pintar seus sonhos, seus medos, sua esperança. A cada batida de asas, novas cores irrompiam, metamorfoseando o silêncio em um jardim em movimento.
Com o passar do tempo, impulsionada pelas marés, a garrafa viajou por lugares desconhecidos, enquanto as borboletas perseveravam em seu trabalho de embelezamento, não por ilusão, mas por fé. Cada cor era uma promessa, uma oração silenciosa, clamando ao universo pela dissolução das barreiras que as aprisionavam, para que o mundo exterior se igualasse à beleza que cultivavam em seu interior. Cada pincelada, cada traço nas paredes de vidro, era um lembrete de que a esperança não é um destino, mas um caminho a ser trilhado, mesmo quando o fim parece distante.
A garrafa enfrentava ondas vorazes e dias sob o sol inclemente, mas, em seu interior, as borboletas persistiam. Pintavam, coloriam, preenchiam o vazio, convictas de que o impossível e o próspero, como faces da mesma moeda, caminham lado a lado.
No final, o silêncio se revelava a verdadeira cor das flores. Nele, as borboletas encontravam sua voz, construindo um universo de possibilidades infinitas, mesmo em cativeiro. E quem sabe, um dia, a garrafa encontraria repouso em alguma praia distante, suas cores intactas, narrando a história de como a coragem de pintar o próprio mundo transforma o impossível em próspero.
E, então, as borboletas seriam libertas, não pela quebra da garrafa, mas pela compreensão de que a liberdade reside na capacidade de transformar a adversidade em beleza, mesmo quando as ondas nos levam a lugares desconhecidos.
E assim, a garrafa, impulsionada por correntes invisíveis e abençoada pela sorte dos náufragos, conheceu oceanos, contornou continentes e resistiu a tempestades implacáveis. Até que, um dia, as ondas, em um gesto gentil e inesperado, a depositaram suavemente em uma praia de areias suaves e águas verdes. A praia, adornada por coqueiros e ajuruzeiros exuberantes e flores de cores vibrantes, era um portal para um reino de magia e maravilhas: Mayandeua.
Ali, uma jovem com olhos curiosos caminhava pela praia, colecionando conchas e pedras coloridas. Seu nome era Aiyra, estava em forma humana e era uma das princesas de Mayandeua, guardiã de seus segredos e protetora de sua magia. Aiyra avistou a garrafa, brilhando à luz do sol, e sentiu um chamado irresistível. Era diferente de tudo que já havia visto, um objeto estranho vindo de um mundo desconhecido.
Com cuidado, Aiyra pegou a garrafa e a examinou. O vidro era liso e quente, e dentro, um turbilhão de cores a hipnotizou. Borboletas de todas as tonalidades imagináveis dançavam em um jardim mágico, pintando as paredes internas com traços de esperança e beleza. Aiyra sentiu um aperto no coração, uma conexão instantânea com aquelas criaturas aprisionadas.
Levando a garrafa para o Vale, Aiyra a mostrou aos sábios de Mayandeua, buscando entender a história daquele objeto singular. Os sábios, após longos estudos e meditações, revelaram que a garrafa era um portal, uma janela para um mundo de sonhos e esperanças aprisionadas. As borboletas, disseram, eram a personificação da beleza que reside em cada ser, mesmo quando cercado pela escuridão. Comovida pela história, Aiyra decidiu libertar as borboletas. Mas como? A garrafa parecia indestrutível, e a magia de Mayandeua, embora poderosa, não se estendia a objetos vindos de outros mundos. Aiyra então teve uma ideia: se as borboletas haviam criado beleza dentro da garrafa, talvez a beleza de Mayandeua pudesse libertá-las.
A princesa levou a garrafa para a ilha, um lugar de energia pura sendo a na Pedra Chorona. Lá, sob a luz da lua cheia, Aiyra começou a cantar uma melodia suave e melancólica, uma canção que falava da liberdade, da esperança e do poder da beleza. As flores dos bacurizeiros ao redor desabrocharam em cores ainda mais vibrantes, e a brisa suave carregou o aroma para o manguezal. Enquanto Aiyra cantava, a garrafa começou a vibrar. As borboletas, sentindo a energia da canção, intensificaram sua dança, pintando as paredes de vidro com cores ainda mais intensas. De repente, um raio de luz pura emanou da garrafa, rompendo o vidro em mil pedaços. As borboletas, finalmente libertas, voaram em direção ao céu, espalhando suas cores por toda Mayandeua e Algodoal.Aiyra sorriu, sentindo a alegria e a gratidão das borboletas. A garrafa, agora vazia, se transformou em pó, retornando à terra. As borboletas se espalharam por toda a ilha, polinizando as flores, alegrando os corações e inspirando a todos com sua beleza e liberdade.
E assim, a garrafa que viajou pelos oceanos encontrou seu destino final em Mayandeua e Algodoal , um reino onde a magia e a beleza se unem para transformar o mundo. As borboletas, libertas da garrafa, se tornaram um símbolo da esperança e da resiliência, lembrando a todos que, mesmo nos momentos mais sombrios, a beleza sempre encontra um caminho para florescer. E Aiyra, a princesa de Mayandeua, aprendeu que a verdadeira magia reside na capacidade de libertar a beleza que existe em cada ser, transformando o mundo em um lugar mais colorido e feliz.
- Assim narrou Primolius num final de tarde...
FIM
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Projeto Literário e Musical Primolius N° 0946