N° 0935 - O CANTO DAS GURIJUBAS - SÉRIE: CONTOS FANTÁSTICOS DE MAYANDEUA
Às margens de um grande rio que se encontrava com o mar, existia uma vila de pescadores. Suas casas eram simples, feitas de madeira e palha, mas carregavam o perfume das marés e a marca do tempo nos batentes. A vida ali seguia o ritmo do oceano, ora generoso, ora implacável, sempre lembrando a todos que era ele quem regia o destino da comunidade. Os homens partiam ao amanhecer em suas canoas estreitas, com as mãos calejadas e o olhar acostumado a decifrar o movimento das águas. As mulheres cuidavam da terra, das crianças e das rezas, pois sabiam que nada prosperava sem o consentimento do rio.
No entanto, não era qualquer peixe que sustentava a imaginação da vila. Havia um que, mais do que alimento, era considerado sagrado: a Gurijuba. De corpo prateado que brilhava como se carregasse a própria luz do sol, ela deslizava nas águas com a destreza de quem conhecia todos os segredos do mundo. Muitos diziam que não nascera como os demais peixes, mas de um encanto: era filha de uma estrela que caíra no mar numa noite de silêncio profundo. Outros afirmavam que era guardada pelos encantados, espíritos invisíveis que protegiam as águas e castigavam a arrogância humana.
Capturá-la era um desafio que poucos ousavam enfrentar. Não importava a técnica, nem a rede mais bem tecida: a Gurijuba sempre escapava. Era como se pressentisse as intenções dos pescadores antes mesmo de eles lançarem suas armadilhas. Para alguns, ela era apenas astuta. Para os mais antigos, era a própria voz do rio, ensinando que nem tudo pode ser possuído.
Certa vez, um grupo de homens, cansado das derrotas, decidiu desafiar os costumes da vila. Reuniram-se às escondidas e planejaram uma noite de caça sem rezas, sem oferendas, sem pedir licença às águas. Teciam redes invisíveis, armavam anzóis com iscas raras e confiavam que a esperteza humana seria suficiente para vencer o mistério do peixe. Partiram sob a lua crescente, as lanternas refletindo na superfície calma do rio.
Durante horas, pairou apenas silêncio. Então, subitamente, o furo se agitou como se tivesse vida própria. As canoas balançaram, as redes se romperam, e um brilho cortou as águas. Era uma enorme Gurijuba. Seus olhos refletiam algo humano, quase uma advertência. E dizem que, naquele instante, uma voz ecoou das profundezas: “Aquele que deseja apenas tomar será sempre vencido. O mar não é escravo, é caminho. E o alimento só se entrega a quem respeita o que não pode ser dominado.”
Apavorados, os pescadores retornaram de mãos vazias. A vila inteira os aguardava, e quando ouviram a história, ninguém mais duvidou da força do encantamento. Desde então, a Gurijuba deixou de ser apenas o peixe mais cobiçado; tornou-se guardiã do equilíbrio entre o homem e a natureza. Os mais jovens aprenderam com os anciãos que a pesca não começa na rede, mas na reverência. Antes de sair ao rio, era preciso oferecer flores, cantar rezas e lembrar que a fartura só existe quando o respeito antecede o desejo.
Com o tempo, poucas Gurijubas foram capturadas, e cada vez que isso acontecia a carne era dividida em silêncio solene. Ninguém comia sem antes agradecer. O sabor não era apenas de peixe, mas de sagrado, de memória e de vida partilhada. As histórias daquela noite continuaram sendo contadas nos avoados , para que as crianças jamais se esquecessem da lição que vinha das águas.
Até hoje, quem caminha pelas margens do rio ao entardecer pode jurar ouvir um canto leve misturado ao barulho das ondas. É a canção da Gurijuba, lembrando aos homens que a verdadeira riqueza não está em possuir, mas em compreender. Pois a vida não é feita de conquistas rápidas, mas da paciência de quem respeita o tempo da natureza.
E assim, a vila segue vivendo, sustentada não apenas pela pesca, mas pela sabedoria de um mito que se tornou verdade.
- Histórias da Região do Salgado....
- Bem perto de Mayandeua!
FIM
Copyright de Britto, 2021
Projeto Literário e Musical Primolius N° 0935