* Nº 0926 - DEPOIS DA VENTANIA - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA


Ao chegar do trabalho, Tulys foi recebida por uma cena que parecia pequena, mas guardava o peso de um desabafo inevitável. A ventania lá fora rugia como um animal enjaulado, batendo contra as janelas e arrastando folhas secas pelo quintal. Ela mal teve tempo de fechar a porta quando percebeu: o vaso estava no chão, em cacos. O barulho do impacto ecoou no silêncio de sua sala, mas não se comparava ao estrondo dentro dela.

Era apenas um vaso, diriam alguns. Mas para a jovem, era mais. Era o peso do dia, das semanas, dos anos acumulados. Era o cansaço que vinha grudado em seus ombros desde manhã cedo, misturado à pressão invisível de ser quem precisava ser — profissional exemplar, mãe atenciosa, amiga presente, mulher forte. E agora, na quietude do lar, o vaso caído tornava-se metáfora de algo maior. Não era só vidro e água derramada; era ela mesma quebrada, espalhada pelos cantos, tentando entender como juntar os pedaços.

Lá fora, a ventania continuava, anunciando tempos turbulentos. Era como se sussurrasse aos ouvidos de outras mulheres, outras Tulys espalhadas pela cidade, que elas também poderiam encontrar, em algum momento, suas próprias porcelanas estilhaçadas. Talvez fosse uma xícara favorita, um quadro pendurado na parede ou até mesmo aquela expectativa irreal de perfeição. No fundo, todas carregavam algo frágil, prestes a sucumbir à força do vendaval cotidiano.

No refúgio da raiva, ela sentou-se no chão, entre os cacos. As lágrimas rolaram sem aviso, grossas e quentes, molhando suas mãos trêmulas. Ela olhou ao redor, buscando algo que pudesse consertar o irreparável. Mas não havia cola mágica, tampouco retrocesso. Havia apenas o presente, cru e doloroso, exigindo que ela enfrentasse o que realmente importava.

Foi então que seu olhar pousou sobre o smartphone jogado ao lado do sofá. Ali estava ele, intacto, indiferente ao caos emocional que a consumia. Um objeto sagrado, talvez o único elo ainda funcional com o mundo exterior. Tulys o pegou, hesitante, como quem segura um pedaço de si mesma. Desbloqueou a tela e viu notificações pipocando: mensagens de trabalho, fotos de amigos felizes nas redes sociais, lembretes de compromissos futuros. Tudo tão distante, tão alheio à tempestade interna que vivia.

Naquele instante, um pensamento fugaz cruzou sua mente, uma imagem de um refúgio distante: Mayandeua, Algodoal. Lugares onde talvez não haveria as cobranças implacáveis da cidade, as notificações incessantes, a necessidade de performance constante. Onde o barulho predominante seria o do mar e do vento, não o das expectativas alheias.

Mas, ao invés de mergulhar nessa avalanche digital ou na utopia de uma fuga, ela respirou fundo. A ventania lá fora começava a amainar, deixando espaço para um ar pesado, úmido, que antecede a calmaria. Tulys percebeu, então, que não precisava colar o vaso. Nem salvar o smartphone. Precisava, sim, reconhecer que, assim como o vaso, ela também tinha direito de quebrar. De errar. De sentir. E que, por mais que a ideia de um paraíso como Mayandeua ou Algodoal fosse tentadora, a verdadeira calmaria não estaria em um lugar onde não haveria responsabilidades nem as complexidades da vida adulta, mas sim na aceitação de quem ela era, com todas as suas fragilidades e força para se reerguer.


- Conversas de beira no cais!   


FIM

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Projeto Literário e Musical Primolius N° 0926

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