*Nº 0918 - MUNDO GUARDA - CHUVA - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEYUA
(Direto de Mayandeua)
Ruído nas telhas da velha cidade, um som que ecoa como uma sinfonia descompassada. Mais ruídos nos transportes da elite, carros que avançam impacientes sobre as poças d'água, enquanto alguém estressado quase é atropelado ao atravessar a rua apressadamente. Vendedores de frutas correm tentando proteger suas mercadorias do aguaceiro que desaba sem aviso. Sons e miragens tomam conta do Centro aberto, onde a chuva desmorona sobre as cabeças apressadas dos transeuntes.
Na esquina de uma avenida qualquer, um grisalho homem ergue os olhos para o céu, saudando as nuvens com um sorriso discreto. Seus equipamentos — guarda-chuvas coloridos — se abrem em tonalidades diversas, parecendo flores apressadas em viver sob a tempestade. Homem e chuva dançam juntos, contentes feito borboletas em seu primeiro voo. O inverno chegou, e com ele os guarda-chuvas proliferam, transformando as ruas em um mosaico vibrante de cores e movimentos.
Assim, naturalmente, as vidas de muitos na Amazônia entregam-se às ruas encharcadas, iluminadas pelas luzes de Natal que resistem bravamente ao temporal. Janelas se fecham, outras portas se abrem, e as pessoas ficam mais próximas umas das outras, forçadas pela proximidade do momento. Olham para o céu, não param de ver a chuva caindo. Alguns se lembram da mocidade, outros, indecisos, apenas observam os irmãos molhados, preocupados com suas roupas ou cabelos. Nesta visão de homens molhados e paraenses, a imaginação galopa como a própria chuva.
Aproveitam para pensar em outras coisas. Em muitas mentes secas, proliferam pensamentos e emoções dentro dos curtos espaços que a vida oferece. Vejo seus traços marcados pelas rimas da vida: cansadas nas paradas de ônibus, violadas pelo tédio, atrasadas pelo ofício, mas ainda assim apaixonadas pela vida. O inverno chegou, e nas valas e bueiros o lixo passa e repassa informações, como se fosse parte de um ciclo invisível que ninguém nota, mas que todos sentem.
É nesses momentos que o pensamento escapa — como quem pega carona num barco de madeira — e navega para bem longe dali. Vai parar em Algodoal. Ilha de encantos mansos, onde o tempo escorre com outra cadência e o silêncio é entrecortado não por buzinas, mas pelo vento e o quebrar das ondas. Lá, a chuva também chega, mas sem pressa, como se pedisse licença à areia para repousar sobre ela. Lá, o guarda-chuva quase não é necessário. Um pano na cabeça, uma rede no alpendre, e o inverno se torna um pretexto para histórias, café coado e risos entre vizinhos.
Enquanto a cidade pulsa entre fios de tensão e passos apressados, Algodoal permanece suspensa — um refúgio dentro da própria Amazônia, onde o ruído é outro, e a chuva não interrompe, mas reconecta.
Ruído nas telhas da velha metrópole. O grisalho homem, com seus guarda-chuvas, defende o pão diário nesta tarde de frio molhado. Ele é um guerreiro silencioso, enfrentando o vento e a chuva para garantir que sua pequena barraca de guarda-chuvas continue de pé. Quando o vento e a chuva cessam, ele conta os trocados, satisfeito por ter sobrevivido mais um dia. O inverno chegou, mas ele sabe que a vida segue, mesmo quando tudo parece difícil.
Fim de tarde, fim do "encharcamento". A vida continua na velha avenida da capital, onde o homem grisalho, agora feliz, observa seus guarda-chuvas sendo levados para novas casas. Eles sorriem, como se tivessem encontrado seu propósito ao proteger outras pessoas da chuva. No final, resta o som da chuva diminuindo, os guarda-chuvas fechados e as histórias que cada pessoa carrega consigo. O inverno chegou, mas trouxe consigo algo mais do que água e frio: trouxe memórias, reflexões e conexões. E assim, enquanto o grisalho homem guarda seus últimos trocados e eu caminho em direção ao bar, percebo que a chuva não é apenas um fenômeno climático. É uma força que une as pessoas, que revela suas vulnerabilidades e suas forças, e que transforma até os momentos mais simples em algo profundamente humano.
Porque no coração da Amazônia, mesmo sob a chuva, a vida nunca para de pulsar. Mas no fundo da memória, como um sopro, está Algodoal — a lembrança viva de que ainda é possível respirar devagar.
- Assim narrou Primolius!
FIM
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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0918


