* Nº 0270 - "MIRIANDO" A VIDA - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA

 


Cinquenta anos depois de uma conversa, Miriam ainda está em meu quarto. A boneca de cera, com seus olhos perpetuamente voltados para a cama, observa silenciosamente as mudanças que o tempo trouxe para a nossa pequena casa na ilha de Algodoal, pérola das terras do Norte da Amazônia. As paredes, outrora brancas, agora exibem tons de verde musgo, reminiscências das matas que cercam nossa residência. O cheiro de terra molhada e a sinfonia dos pássaros continuam a ser parte do meu cotidiano, assim como as memórias de uma infância compartilhada com uma amiga de cera.

Nas manhãs, a luz do sol penetra pelas cortinas leves, iluminando os traços delicados de Miriam. Sento-me na cama ao seu lado, sentindo o peso dos anos e a leveza das lembranças. O manguezal lá fora, com sua exuberância e mistérios, sempre foi um pano de fundo constante para nossas conversas imaginárias. As árvores gigantescas, que se erguem como guardiãs silenciosas, parecem ouvir os segredos que sussurro para Miriam.

Lembro-me das tardes em que, depois da escola, explorávamos os arredores da nossa casa em Algodoal. Embora Miriam fosse uma boneca, na minha mente ela ganhava vida, transformando-se em uma companheira inseparável nas aventuras pelo manguezal. Juntas, enfrentávamos tempestades torrenciais, desvendávamos os segredos das flores exóticas e imaginávamos encontros com criaturas míticas que habitavam as águas dos rios sinuosos e as praias e lagos da ilha. Cada descoberta era celebrada com sorrisos e confidências que só a inocência da infância poderia proporcionar.

Com o passar dos anos, a realidade se impôs, e a inocência da infância deu lugar às complexidades da vida adulta. Contudo, Miriam permaneceu ali, como um símbolo de pureza e constância em meio às incertezas. Nas noites solitárias, quando a lua cheia se espelha nas águas que banham Algodoal, converso com ela sobre os desafios do cotidiano, as perdas e as pequenas vitórias que pontuam minha existência. A ilha, com sua riqueza cultural e natural, sempre foi mais do que apenas um lugar físico para mim. É um santuário de memórias e emoções, onde cada árvore, cada animal, carrega uma história. Miriam, com seus olhos fixos às vezes para a janela, parece compreender essa conexão profunda.

As décadas trouxeram mudanças inevitáveis para a mata e para a nossa vida na ilha. Eu, assim como Miriam, que tudo observa, passamos e possuímos por quase todas as mudanças de Algodoal, desde os tempos em que as noites eram iluminadas apenas pela chama  das lamparinas e  lampiões a querosene, até a chegada da energia elétrica, que transformou o cotidiano e as sombras da nossa ilha. A modernização avançou silenciosamente pelas trilhas, trazendo consigo novas rotas e, infelizmente, também ameaças ao nosso paraíso natural. As queimadas esporádicas e o desmatamento crescente são lembranças dolorosas das conversas que tive com Miriam sobre a fragilidade do nosso lar. Juntas, refletimos sobre a importância de preservar o que restava e como cada pequeno esforço poderia fazer a diferença.

Em muitas noites, enquanto a chuva caia incessantemente, percebia que nossa amizade transcende o tempo e a matéria. Ela é um elo entre o passado e o presente, uma testemunha silenciosa da minha jornada. Miriam, mesmo em sua inanimada existência, oferece consolo e sabedoria que vão além do que se pode imaginar. Suas respostas, apesar de mecânicas, carregam uma profundidade que só o coração pode interpretar. Hoje, aos setenta anos, ainda mantenho Miriam ao meu lado. As mãos que antes desenhavam sonhos em papel agora repousam sobre a boneca com ternura. Sinto que, de alguma forma, ela me ajuda a manter viva a essência da minha infância, a pureza dos sentimentos que compartilhávamos. A Amazônia, e em especial nossa Algodoal, continua a ser o cenário onde minha história se desenrola, e Miriam, a boneca de cera, permanece como a guardiã dos meus segredos mais profundos. Que estas areias encantadas da ilha sejam sempre protegidas pelas Sereias de Algodoal, mantendo viva a magia que pulsa em cada grão e em cada onda que beija suas praias.

Refletindo sobre o significado do amor que conversamos tantos anos atrás, percebo que ele evoluiu e se aprofundou com o tempo. O amor, como Miriam me ensinou, é mais do que palavras ou gestos. É uma presença constante, mesmo que invisível, uma força que nos sustenta nos momentos mais difíceis. As cicatrizes da vida estão marcadas em meu rosto e em meu espírito, mas a lembrança das conversas com Miriam traz um alívio suave, como a brisa fresca que atravessa o manguezal após uma tempestade. A comunidade ao redor também mudou. Vizinhos que eram crianças  agora são velhos adultos, e alguns já partiram, deixando para trás histórias e legados. No entanto, a essência da vila permanece intacta em meu coração. As celebrações das tradições locais, os rituais  e a música que ecoa nas noites estreladas são lembranças vivas que compartilho com Miriam. Juntas, assistimos ao ciclo perpétuo da vida naquele local, onde cada amanhecer traz uma nova oportunidade de contemplação e gratidão.

Em momentos de reflexão profunda, me pergunto se Miriam, de alguma forma, sente a passagem dos anos como eu. Seus olhos, voltados também para a janela, parecem absorver cada mudança que ocorre lá fora. Talvez, em sua quietude, ela compreenda a essência  da vida e a importância de valorizar cada instante. A ligação que temos transcende o físico, unindo passado e presente em uma harmonia silenciosa. À medida que a noite avança e os sons das águas se intensificam, reflito sobre a jornada que percorri. Miriam, a boneca de cera, não é apenas um objeto de infância, mas uma testemunha silenciosa de todas as fases da minha vida. Ela simboliza a continuidade, a memória e a resiliência diante das adversidades. Nas terras do Norte da Amazônia, onde a natureza e a memória se encontram em uma dança eterna, encontro paz e significado na presença constante de Miriam.

E assim, com Miriam ao meu lado, sigo vivendo , onde a memória e a natureza se unem em uma dança eterna. A vila, com sua beleza indomável e complexidade infinita, continua a ser o palco onde minha história se desenrola, e Miriam, a boneca de cera, permanece como a guardiã dos meus segredos mais profundos, um elo inquebrável entre a inocência da infância e a sabedoria da idade que para ela nunca chegará.

- Assim  escrevo para o tempo "miriando" as lacunas do que ainda não vivi.


FIM

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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0270


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