Há uma alquimia sutil nas sombras que se bordam sobre a varanda de uma casa amazônica. Elas não são meros véus de frescor dançando ao capricho do vento, destes que vem de Maya; são pergaminhos, fragmentos de histórias que se embaraçam aos murmúrios da mata e ao hálito úmido da terra. É como se cada folha, em sua nervura, guardasse um segredo, e o vento, maestro invisível das dunas, trouxesse à tona as narrativas daqueles que ali fincaram raízes ou apenas pousaram na terra-mar gentil.
Enquanto a mata se agiganta, suas árvores parecem ostentar olhos — pupilas de casca, cerradas para o tempo, abertas para as nuvens, testemunhas mudas de gerações que floresceram e murcharam sob seus mantos de nuvens. Mas a vida na Amazônimaya não se monta apenas com fios de beleza e encantamento; ela também desenterra momentos áridos, brotados de um chão outrora fértil, ou revela os estigmas em corpos que, desde a tenra idade, carregam o peso de novas parcerias com um tempo que muito exigiu. Deixou para trás o espectro de uma espinhela caída, a curva de uma escoliose, males antigos, heranças de um território de lidas incansáveis, mas implacável em suas futuras dores. Contudo, mesmo diante desses desafios gravados na carne e na alma, há sempre um refúgio: uma sacada resguardada por plantas que medram timidamente, como se quisessem proteger com suas folhas quem as nutre. Na entrada, um fio singelo, lavado em querosene, serve tanto de barreira invisível quanto de irônico convite aos mosquitos que zumbem sua melodia incessante.
Ali, tudo se move em compasso vagaroso, como se o próprio tempo tivesse sido domesticado pela lentidão sinuosa dos galhos e cipós que se enovelam ao fundo. No pequeno atalho que rasga a mata, um grito súbito corta o ar. "Éi, sumano!", brada o caboclo, o dedo apontando para um mistério invisível aos nossos olhos de muitas cidades no horizonte. Um latido rouco ecoa em resposta, talvez do cão fiel, sentinela da propriedade. A cena pulsa, vívida e dinâmica, embora tudo pareça imerso numa calmaria ancestral que emana da floresta circundante.
Mais adiante, avista-se uma palhoça aninhada entre terreiros encantados pela sombra generosa de mangueiras e jaqueiras frondosas. As varandas solteiras, adornadas com rosas e papoulas, o amarelo vibrante dos bem-te-vis e o bailado iridescente dos beija-flores – e por vezes, o verde intenso de um Primolius que ali pousa brevemente – parecem namorar o vento que as afaga. No quintal, varas de pau verde, fincadas com acesso aos xerimbabos, sustentam criações modestas: galinhas ciscando em seu alvoroço matinal, porcos fuçando a terra úmida com sofreguidão. A família é um clã, numerosa, unida pela simplicidade despojada e pela força indomável de seus laços. O caboclo não conhece o sono da servidão, pois sua liberdade está enraizada na terra que cultiva com as próprias mãos e na cultura que pulsa em suas veias. As crianças, brincam nas nuas de areia, cabeludas, pés descalços fincados no chão, devorando mangas sumarentas colhidas diretamente do pé, empoleiradas num banco rústico de ipê ou de acapú. Dentro da morada, banquinhos arredondados, feitos de troncos, circundam a cozinha, onde o girau, prateleira suspensa, exibe um peixe fresco, ainda prateado, recém-arrancado do furo. Na rede próxima, embalando um sonho leve, repousa o novo rebento, envolto em cueiros com um vago perfume de lavanda silvestre, os olhinhos ainda lacrimejantes, mal descerrados para o mundo. Este zinho, pequeno milagre, é amamentado pela cabocla de saia rodada e colo farto. Seus gestos são de uma delicadeza instintiva, carregados de amor maternal, mas também espelham a têmpera de uma vida que não concede tréguas.
Pratos de alumínio, polidos pelo uso, reluzem sobre a mesa rústica, prontos para o ritual da refeição. As canecas, outrora latas de leite condensado, testemunham a criatividade da necessidade, e no pote de barro, o pegador de água, também de alumínio, serve a todos com igualdade. No fogareiro improvisado, pupunhas cozinham lentamente, exalando seu aroma adocicado e terroso. Os cachos vermelhos dos frutos pendem das palmeiras vizinhas, como uxis gigantes, símbolos da pródiga generosidade da terra. Tudo parece mergulhado numa paz transitória, pelo menos por ora. A lembrança da enxurrada que outrora assolou o lugar agora parece uma miragem distante, uma promessa tácita de dias melhores.
Mas nem tudo é perfeito nesse fragmento de mundo. A cabocla sorri, sim, um sorriso que ilumina, mas que por vezes é subitamente velado pelo choro insistente do bebê. Adversidades são companheiras antigas dessa gente: a escassez de recursos, as dificuldades impostas pela distância, o isolamento que tanto protege quanto aprisiona. No entanto, eles encontram, na resiliência inata, formas de seguir adiante, nutridos por esperanças que se renovam a cada alvorecer. Lá no retiro, nos roçados mais distantes, ananases começam a despontar, coroas verdes prometendo a doçura de colheitas fartas naquele mês que se anuncia sagrado.
E assim flui a vida na Amazônimaya, um intrincado bordado de sombras e luzes, risos e lágrimas, reveses e renovos. Há uma paz peculiar que emana deste cenário, uma tranquilidade profunda que só pode ser verdadeiramente compreendida por quem já sentiu o vento amazônico beijar-lhe o rosto e escutou os segredos que a mata sussurra ao cair da noite. É uma paz que não nega os desafios, mas os acolhe, os integra como parte indissociável da existência. Uma paz que, apesar de tudo, e por causa de tudo, teimosamente persiste.
Um abraço ao ritmo desta natureza.
FIM
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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0217