* Nº 0197 - O CHAMADO - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
Enquanto navegava em direção à Ilha de Algodoal, ele narrava em seu celular o fim de mais um dia comum, onde o ar denso carregava o aroma do asfalto aquecido pelo sol implacável que ficava para trás. O calor parecia se dissipar à medida que o barco se afastava da cidade, mas a lembrança da exaustão de uma jornada sem fim permanecia. As ruas imersas no frenesi urbano agora eram uma memória distante, e o som dos passos apressados havia sido substituído pelo murmúrio constante das ondas. As pessoas apressadas e apáticas de antes davam lugar à vastidão do oceano, onde talvez seus próprios medos e desejos pudessem finalmente ser revelados sem máscaras. As risadas vazias e os fingimentos pareciam irrelevantes diante da imensidão do mar e da promessa da ilha.
Olhando para a água, naquele instante da travessia, com o balanço suave do barco como um compasso ritmado, seus pensamentos vagavam. Era fascinante como a mente podia se desviar do presente e se perder nos labirintos do tempo, assim como a embarcação se distanciava da costa. À medida que a brisa marítima soprava, parecia carregar mais do que sal e umidade; trazia consigo ecos de histórias, fragmentos de existências que o mundo urbano deixava para trás. Ele sempre imaginou o vento como um mensageiro distraído, incerto de seu destino, levando consigo segredos da cidade para este novo lugar.
De repente, uma garça solitária surgiu no céu, planando e girando antes de seguir seu próprio curso. Era como uma carta perdida, pensou ele, uma mensagem do vento marinho. Não havia remetente nem destinatário visíveis, apenas a liberdade do voo contra o vastidão azul. Ela estava ali, comunicando mais pela graça de sua presença do que por qualquer palavra escrita. Ele a observou, curiosamente, como se aquele pássaro fosse um prenúncio de algo diferente. Mas antes que pudesse contemplá-la por mais tempo, a garça, impaciente com sua própria jornada, desapareceu de vista. Ele ficou parado, observando o espaço vazio onde ela estivera, engolida pela vastidão do céu, como tantas outras coisas que se perdem de vista.
Quantas palavras, quantas histórias se perdiam assim, levadas pelo vento e pelas ondas, sem jamais chegarem a um destino conhecido? Quantas conversas ficavam suspensas entre a partida e a chegada, dissolvidas pela distância e pela inconstância do movimento? O vento marítimo, embora fresco, carregava uma força invisível, como se fosse o portador das promessas da ilha, dos silêncios do mar e do motor do barco em fúria entre as águas fazia o cominho nestas trilhas de Maya . Ele pensou em todas as expectativas não ditas sobre Algodoal, em todas as sensações não experimentadas, nas possíveis descobertas que aguardava. O tempo, ali, na travessia, parecia desacelerar, moldando suas esperanças e curiosidades, ensinando, na quietude do oceano, que havia experiências que só poderiam ser vividas naquele novo vento de um oceano de sereias ocultas.
Ao seu redor, a vida marinha seguia seu curso. Pratiqueiras saltavam brevemente da água, e o horizonte parecia de espumas, ignorando a agitação da cidade que ficava para trás. E aquele mar, tão vasto e sereno, parecia um velho sábio que o convidava a se desapegar do passado, mas, como sempre, a mente ainda estava presa a algumas lembranças de contas e obrigações . Os pensamentos da cidade se dissipavam na brisa salgada, sendo substituídos pela expectativa do que a ilha reservava. Enquanto isso, o barco cumpria sua missão, levando-o para longe da costa conhecida, talvez para um lugar onde novas histórias pudessem começar. O mar não era poderoso pelo que destruía, mas pelo que permitia – a travessia para o desconhecido, a oportunidade de deixar para trás histórias antigas para encontrar novas perspectivas. Ele sentiu que algo estava mudando dentro de si, mas não sabia exatamente o quê. Não era nostalgia, nem uma alegria completa, mas uma sensação de transição, como se estivesse deixando para trás uma parte de sua jornada e se aproximando de um novo capítulo que ainda não havia sido escrito.
Olhando para a linha distante da costa de Algodoal, começou a imaginar: e se aquela ilha fosse o lugar de depositarmos cartas perdidas pelo vento e assim, encontrassem um pouso final? Talvez houvesse ali, em meio à natureza intocada, um lugar onde as palavras não ditas e os sentimentos suspensos pudessem finalmente encontrar algum tipo de resolução. Talvez um dia, o próprio vento marítimo trouxesse novas mensagens, completando algumas das histórias que ficaram incompletas na cidade.
Por enquanto, tudo o que lhe restava era sentir a brisa do mar em seu rosto e imaginar que, naquela ilha, não havia apenas águas e paisagens, mas também a possibilidade de encontrar novas histórias. E que aquela travessia era como virar uma página, deixando para trás o que se perdeu para dar espaço ao que ainda poderia ser vivido.
- Cartas ao vento de Maya!
FIM
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Projeto Musical e Literário Primolius N° 0197