* Nº 0387 - O SONHO DE UM PEIXE-PEDRA - SÉRIE: FÁBULAS DE MAYANDEUA
Era uma vez, um peixe-pedra. Não que os outros peixes percebessem, mas em seu íntimo ele se sentia inquieto, faminto por conhecer o que jazia além das fendas rochosas onde passava os dias. Ele sonhava com o Lago da Princesa, um lugar que as lendas sussurravam que aquele lugar possuía águas cristalinas e fartura sem fim. Um dia, esse peixe-pedra encontrou outro de sua espécie, que também partilhava a vida entre as pedras e a lama. Este, ao contrário do primeiro, encontrava encanto na rotina, na busca por pequenos crustáceos entre as pedras, no ritmo constante das marés.
"A vida é mais do que raspar limo das pedras," disse o primeiro peixe-pedra, seu olhar fixo num ponto distante da baía, onde a luz do sol fazia cintilar a água como diamantes. "Dizem que no Lago da Princesa, a água canta e os peixes jamais sentem fome."
O outro suspirou. "São apenas histórias. Contos para acalmar os peixes pequenos. Aqui, entre as pedras, temos abrigo e conhecemos os perigos. Lá, quem sabe o que nos espera?"
Mas o primeiro não se deixou dissuadir. Descreveu o lago com paixão, a beleza que imaginava, a segurança que ansiava, e a própria presença da princesa, que segundo várias histórias, velava por todos os seres que habitavam aquele paraíso aquático. O velho caranguejo ermitão, que por vezes visitava as rochas, contava maravilhas de lá: peixes com escamas de prata pura e cantos melodiosos que acalmavam a alma de todos ao redor.
A conversa se estendeu até o entardecer, e o segundo peixe-pedra, ainda que hesitante, começou a partilhar do sonho do outro. Ambos então ansiariam por conhecer a princesa e, quem sabe, encontrar um lar seguro e abundante nas águas encantadas de Maya. Naquela noite, porém, a calmaria marítima não durou. Um vento furioso uivou sobre a baía, e o céu desatou em lágrimas torrenciais. Um temporal implacável varreu as pedras, e a maré, possuída por uma força descomunal, invadiu a costa.
O primeiro peixe-pedra, impetuoso, exultou com a força da água, vendo nela a oportunidade de realizar seu sonho. O segundo, apreensivo, tentou alertá-lo para o perigo, mas foi em vão. Uma onda gigante os arrancou de seu lar rochoso e os lançou à mercê das águas turbulentas em direção a Maya. A viagem se tornou um pesadelo de sal, espuma e vertigem. Temeram a morte a cada instante, engolindo água e perdendo a esperança. O primeiro peixe-pedra, outrora tão confiante, sentiu o medo paralisá-lo. O segundo, apesar do terror, manteve a serenidade, guiando-o em meio à correnteza.
Contudo, entre a fúria das ondas, vislumbres de uma beleza inesperada surgiam. Cardumes de sardinhas prateadas cintilavam nas profundezas, seus corpos unidos como uma corrente de luz viva. Grutas secretas revelavam corais de cores jamais vistas. Criaturas marinhas estranhas e maravilhosas cruzavam seu caminho, cada uma com sua própria história a contar. O primeiro peixe-pedra e o segundo conheceram a fúria dos predadores e a generosidade de peixes que compartilhavam seu alimento. Sentiram a dor do cansaço e a alegria de encontrar um breve refúgio. E perceberam que a verdadeira beleza não estava no destino final, mas na jornada em si. Finalmente, após dias à deriva, a tempestade cedeu. O sol rompeu as nuvens, e a maré os depositou numa praia desconhecida. Exaustos, feridos, mas vivos, olharam para trás, para as águas revoltas que os haviam trazido até ali.
O primeiro peixe-pedra, que tanto almejara o Lago da Princesa, sentiu uma pontada de decepção. O palácio dos seus sonhos permanecia distante, talvez inatingível. Mas ao olhar para o companheiro, percebeu algo que antes lhe escapara: a força silenciosa que o guiara durante a tempestade, a coragem discreta que o impedira de sucumbir ao desespero. O segundo peixe-pedra, que antes se contentara com a vida entre as pedras, viu o mundo com novos olhos. A vastidão da baía, outrora um limite, tornara-se um horizonte de possibilidades. A jornada provara que a segurança não estava em evitar os perigos, mas em enfrentá-los juntos.
Não retornaram imediatamente às pedras familiares. Juntos, decidiram explorar a nova praia, desvendando seus segredos e maravilhas. Aprenderam a caçar em águas desconhecidas, a reconhecer as plantas comestíveis, a evitar as armadilhas da maré. Descobriram que a baía, em toda a sua imensidão, era o seu verdadeiro lar. E assim, os dois peixes-pedra, outrora tão diferentes em suas ambições e desejos, encontraram a verdadeira riqueza não no palácio de uma princesa, mas na força de sua amizade e na beleza da jornada. Aprenderam que o lar não é um lugar fixo, mas uma conexão que se carrega no coração. E que mesmo nas águas turbulentas da vida, a esperança e a beleza podem ser encontradas, basta ter olhos para ver e um amigo ao lado para compartilhar a descoberta.
Moral da história: Mais vale um amigo na correnteza do que um palácio no horizonte. Pois a verdadeira jornada não se mede pelo destino, mas pelos laços que se fortalecem e pela beleza que se descobre ao longo do caminho.
FIM
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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0387