* Nº 0300 - MEMÓRIAS DE LUA - SÉRIE: HISTÓRIAS DE MAYANDEUA


Mormaço aqui não existe. Esse é um lugar onde o tempo não apressa ninguém, onde as coisas acontecem no ritmo do vento que dança entre os coqueiros e das mariposas que giram em torno das lâmpadas de querosene, como pequenas bailarinas noturnas. É aqui, lá no cavado do curral, que a lua surge tímida, com uma brandura que parece abraçar tudo ao seu redor. A vastidão da noite se revela enquanto ela “craria”, espalhando sua luz prateada sobre as árvores, os campos e as galinhas que parecem estar em transe, paradas, como se hipnotizadas pela presença suave daquela esfera celestial. Grilos e mariposas aproveitam a ocasião para celebrar a noite com seus sons e movimentos característicos, enquanto uma vela de cera  suspensa também "coloca lúz" no recinto, auxiliando a lua em sua missão de iluminar o mundo dos homens e dos bichos.  

Mas o sereno ainda não veio. O calor persiste, envolvendo tudo em um manto úmido e pesado. (Tibum!) Seu Bacurau, o velho guardião da noite, está ali na frente do pote, dando boas goladas de sua água de cacimba. Ele é um homem simples, desses que vivem sem pressa, saboreando cada momento como se fosse único. Ao lado dele, um tamborete chama atenção, convidando qualquer traseira cansada para sentar e descansar. Na “cumeeira” da casa, uma vara de pesca repousa, esperando o próximo amanhecer para voltar ao rio.  

Os olhos se erguem para o céu, contemplando as estrelas que piscam distantes. Já no barranco, o espectro noturno começa a tomar forma, aquele ar misterioso que só a noite sabe criar. O fumo de corda, enrolado nas mãos calejadas, libera baforadas lentas. A fumaça sobe, indo embora pra lua, como se quisesse contar suas próprias histórias aos astros. Tudo está em paz. Os grilos continuam seu concerto, as mariposas giram em torno das "lâmpadas de aqui" e o vento traz o som distante do córrego no igarapé. No fundo da rede, balançando devagar, Seu Bacurau solta uma frase que ecoa na noite:  

- "Bua nûti seu Dutô poeta!"  

E os risos ecoam, suaves, como se fossem parte da própria brisa que percorre o interior da Amazônia. Aqui, nesse pedaço de mundo onde o mormaço não existe, a vida é vivida em versos e prosas, em goles de água no balanço da rede. A lua, testemunha silenciosa, guarda essas histórias em seu coração prateado, para sempre.  

Cada detalhe é um presente, cada som é uma melodia, e cada palavra carrega o peso da simplicidade e da sabedoria. Aqui, onde o tempo não importa, tudo é eterno – até mesmo o riso de seu Bacurau, que flutua no ar como uma bênção para a noite. Assim, a estória se fecha, mas não termina. Ela permanece viva, como um murmúrio suave que atravessa gerações. A lua, cúmplice dessa narrativa, segue seu caminho pelo céu, levando consigo as memórias do interior, das gentes simples e dos momentos que, embora rápidos, são eternizados na alma da terra e no coração de quem ouve.  


- Bacuraus cantando na mata!


FIM


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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0300

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