* Nº 0091 - A CAIXA DOS URUBUS - SÉRIE: FÁBULAS DE MAYANDEUA
(Direto de Mayandeua)
Sob o sol belemense de um sábado, sobre o rio Guajará, a brisa trazia consigo a alma da feira do Ver-o-Peso. Um turbilhão de cores, aromas e vozes tecia a sinfonia cotidiana da cidade: o doce perfume das frutas tropicais, o frescor iodado do pescado, o toque terroso das ervas curativas, tudo vibrando em harmonia.
Em meio a essa efervescência, um pequeno oásis de mistério atraía os olhares curiosos. Longe dos produtos habituais, uma barraca singular ostentava uma caixa enigmática, um objeto destoante da familiaridade da feira. Revestida por um couro curtido pelo tempo, adornada por símbolos ancestrais gravados em sua superfície, a caixa emanava uma aura de segredos sussurrados. Seu proprietário, um ancião de olhar penetrante e barba nevada, proclamava sua natureza mágica, a capacidade de conceder anseios profundos.
Rapidamente, a barraca tornou-se um ponto de convergência, um palco de expectativas e rumores. Ganhara um apelido peculiar, "Casa dos Urubus", em referência às majestosas aves que pairavam sobre o local, como se também fossem magneticamente atraídas pela energia emanada da caixa. Entre a multidão fascinada, Ingrid, uma jovem movida pela curiosidade e sede de aventura, sentia-se particularmente compelida. Seus dias eram dedicados a desvendar os recantos secretos de Belém, e aquela caixa parecia clamar por ser o próximo capítulo de suas explorações.
Ao roçar os dedos na superfície da caixa, Ingrid experimentou uma sensação incomum. A textura do couro parecia palpitar, quase viva, e um calafrio percorreu sua espinha. Uma intuição inexplicável a impulsionou a adquiri-la. O velho vendedor fixou a jovem com um olhar carregado de seriedade, silenciando quaisquer outras palavras.
De volta á feira, a impaciência venceu a cautela. Ali mesmo, no coração da barraca, Ingrid ousou abrir a caixa. O instante seguinte silenciou a multidão. Uma luz intensa e pulsante jorrou do interior, banhando a feira em um clarão etéreo. E então, a magia se manifestou: as frutas empilhadas nas bancas ascenderam em um balé silencioso, os peixes saltitavam no ar como se nadassem em um rio invisível, e as ervas desabrocharam com uma vitalidade exuberante, exalando aromas tão intensos que pareciam pororocas na terra.
Feirantes e transeuntes contemplavam o espetáculo. A feira, já um caldeirão de vida, transmutara-se em um reino onírico, onde a realidade se dobrava à fantasia. Ingrid, com os olhos marejados de admiração, percorria o cenário encantado, maravilhando-se com a dança dos objetos suspensos. Entretanto, a magia, outrora suave melodia, começou a desafinar. Os urubus, sentinelas dos céus, desceram em bandos ruidosos, mas sua vinda não era de contemplação. Tomados por uma inexplicável agressividade, investiram contra as pessoas, semeando o pânico e a desordem. O caos se instalou na feira. Peixes escorregavam das bancas em um frenesi desordenado, frutas chocavam-se como projéteis animados, e as ervas entrelaçavam-se em uma selva indomável.
A consciência da necessidade de intervir fulgurou na mente de Ingrid. Com o coração pulsando em seu peito, agarrou a caixa, cerrou os olhos e concentrou-se em um único anseio: restaurar a harmonia perdida. Como um sussurro do vento, a luz se esvaiu, e o caos retrocedeu. Os urubus retomaram seus voos calmos, os objetos retornaram aos seus lugares, e a feira, ainda que marcada pelo susto, reencontrou seu ritmo habitual. Um misto de alívio e temor pairava no ar. Com o peso da responsabilidade em seus ombros, Ingrid tomou a decisão de devolver a caixa ao seu guardião. Ao alcançar a barraca, encontrou o velho vendedor à sua espera. "Você desvendou uma lição valiosa, não é verdade?" indagou ele, com um sorriso carregado de sabedoria. Ingrid assentiu, ainda sob o impacto da experiência.
O vendedor acolheu a caixa em seus braços, e a barraca, outrora palco de magia e terror, tornou-se novamente apenas uma entre as inúmeras histórias que ecoavam na feira do Ver-o-Peso. Ingrid, por sua vez, jamais olvidou aquele dia. A compreensão do delicado equilíbrio entre o querer e o precisar tornou-se a bússola de sua jornada, ensinando-a a contemplar a magia sutil das coisas simples.
A Essência da Lição:
"Nem todos os desejos merecem ser concretizados, por vezes, a plenitude reside naquilo que já possuímos."
FIM
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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0091