* Nº 0067 - BAILADO E UIVOS LUNARES - SÉRIE: CONTOS FANTÁSTICOS DE MAYANDEUA
Aquelas estrelas matutinas, tênues faróis que ousavam romper a escuridão antes da aurora, guiavam-lhes os passos. Sob o comando dessas forças misteriosas, o Cachorro da Lua e seu bando de Bacuraus semeavam travessuras e emoções por onde trilhavam. Nos currais de pesca, erguidos à beira dos mangues, faziam visitas furtivas, deixando apenas seus rastros inconfundíveis na lama úmida ou, porventura, uma única pena como um segredo revelado.
Corria a voz que possuíam um dom singular: pressentir a aflição, o aperto da fome. Quando a penúria assaltava a ilha, quando a pesca se mostrava madrasta e a preocupação toldava os rostos nas palhoças, eles davam um jeito. Um jeito mágico, envolto em mistério, de fartar os currais com mais peixes.
E aconteceu que a escassez se abateu sobre a Ilha de Maya com fúria. Sopraram ventos hostis por longas luas, as marés recusaram os presentes de outrora e os currais despertavam vazios, dia após dia. Nas palhoças, o choro calado das crianças famintas ecoava mais pungente nas noites sem luar, um lamento que chegava aos ouvidos atentos dos encantados e de seus emissários da noite.
Foi então, na mais densa escuridão de uma noite sem lua e sob um céu desprovido de estrelas, que os gritos e assobios do Cachorro da Lua se intensificaram, quase frenéticos. Os Bacuraus, já não eram dez, mas dezenas, e seus cantos fundiram-se numa melodia estranha e hipnótica sobre as águas imóveis dos manguezais. Naquela noite escura, não apenas visitaram os currais; trabalharam.
Sob a luz fraca das primeiras estrelas, prenúncio da manhã distante, o Cachorro cortava as margens, seus assobios agudos parecendo conduzir algo invisível sob as águas. Os Bacuraus, num bailado preciso, cortavam os ares rente às águas, suas asas passavam roçando a superfície, como a tanger cardumes inteiros rumo aos currais.
Ao raiar do dia, quando os pescadores, curvados sob o peso da desesperança, alcançaram os currais, seus olhos testemunharam o inimaginável. Os cercados, antes desolados, cheios de peixes prateados, debatendo-se em águas rasas. Não vinha tal fartura das profundezas marinhas, mas como se guiada até ali por uma força invisível que operava pelos encantados.
Ninguém jamais entendeu como aquilo acontecia. Contudo, em cada coração da Ilha de Maya, florescia a certeza de a quem deveriam agradecer. Em silêncio, fitavam os mangueiros e os céus noturnos desprovidos da luz lunar, e um respeito profundo e silencioso brotava em cada alma. As pegadas na lama e as penas dispersas, encontradas ao amanhecer, eram os únicos testemunhos daquela generosidade noturna e encantada.
Assim, o Cachorro da Lua e os Bacuraus prosseguiram em seu ciclo imemorial, silenciosos guardiões da Ilha de Maya. Não necessitavam de palavras ou ladridos, apenas de seus gritos lancinantes, seus assobios cortantes e da magia muda dos encantados que os governavam sob o pálido brilho das estrelas matutinas. E enquanto pairasse a sombra das noites sem lua e o pranto infantil ecoasse nas palhoças, os habitantes da ilha saberiam que, mesmo nas trevas mais profundas, havia uma força misteriosa e protetora zelando para que a esperança, tal qual os peixes nos currais, jamais se extinguisse por completo.
FIM
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Projeto Literário e Musical Primolius N° 0067