* N° 0897 - ABSTRATO HOMEM DAS CIDADES REAIS - SÉRIE: CONTOS FANTÁSTICOS DE MAYANDEUA



(COVERSA DE TRAPICHE: MARUDÁ - ALGODOAL) 

No espaço físico, onde as paredes parecem ter esquecido o eco das vozes, existe um silêncio absoluto que envolve tudo. Não é o tipo de silêncio que acontece entre um som e outro, não é a pausa de uma conversa ou o intervalo entre batidas de um coração. É um silêncio que preenche o espaço com uma presença quase palpável, um vazio que parece pesar mais do que o próprio ar. E ali, no meio desse vasto nada, encontra-se o Abstrato Homem.

Ele não é exatamente um homem, tampouco uma ideia. É uma mistura das duas coisas, uma existência que flutua entre o que é real e o que poderia ser. Ele está ali, parado, olhando para o espaço que o cerca, tentando entender por que o silêncio lhe parece tão familiar. Em algum momento, esqueceu o som da própria voz, e agora, cada tentativa de falar soa como um grito mudo, um sussurro que se dissolve antes mesmo de nascer.

No espaço físico que o rodeia, tudo é concreto: paredes, chão, teto. Mas dentro do Abstrato Homem, há apenas a confusão de pensamentos que ele não consegue organizar. Ele tenta se definir, dar sentido a si mesmo, mas a cada vez que pensa ter encontrado uma resposta, ela escapa como areia entre os dedos. E nesse ato de tentar se prender ao que é tangível, ele percebe que a própria natureza da sua existência é a de ser indefinido, de não caber em fórmulas ou molduras.

Os dias passam, embora ali dentro do espaço físico o tempo pareça não ter muito significado. O relógio na parede marca as horas, mas o Abstrato Homem não sabe se é manhã ou noite, se é agora ou um outro momento qualquer. Tudo o que sente é a passagem constante de algo que não pode tocar, uma corrente invisível que o empurra para frente, mesmo que ele permaneça parado. Talvez seja isso, pensa ele, talvez eu seja apenas uma ideia em movimento, uma tentativa constante de ser algo que nunca serei.

E então ele começa a caminhar, seus passos ecoando no vazio do espaço físico, embora o som de seus pés pareça não pertencer a ele. A cada passo, ele sente o peso da própria abstração, como se carregasse todas as perguntas que nunca foram feitas, todas as respostas que jamais encontraram seu lugar. Ao tocar uma das paredes, percebe que ela é fria, sólida. "É isso que os outros são?", ele se pergunta. "Sólidos, inteiros, feitos de certezas?"

O Abstrato Homem vê pessoas do outro lado, além do espaço que o aprisiona. Eles têm formas, têm rostos definidos, expressões que revelam emoções claras. Eles sorriem, choram, gritam, mas ele não consegue escutar o som que produzem. Para ele, parece que vivem em um filme mudo, em um teatro de máscaras onde todos sabem exatamente quem são. E é nesse momento que percebe a diferença mais dolorosa: eles são, e ele, apenas tenta ser.

Mas ao continuar sua caminhada, algo muda. Ele começa a perceber que, mesmo naquele silêncio absoluto, há um ritmo. Não é um som, mas um movimento sutil, como se o espaço físico ao seu redor pulsasse com vida própria. E então ele compreende que, talvez, não seja o único a viver nesse estado de abstração. Que, em algum nível, todos os seres, todas as coisas, são também um pouco abstratos, um pouco indefinidos, mesmo que se cubram de certezas.

No fundo, o silêncio absoluto é apenas a ausência das palavras que não foram ditas, das ações que não foram realizadas, dos sonhos que nunca se atreveram a ser. E nesse entendimento, o Abstrato Homem começa a sentir-se mais real. Porque percebe que sua essência não está naquilo que é concreto, mas naquilo que não pode ser medido, tocado, ou visto. Está na tentativa, no movimento, no fato de que ele é, apesar de todas as incertezas, parte desse espaço, parte desse momento.

Ele para novamente e olha para suas mãos, que agora parecem mais nítidas, mais vivas. Elas ainda são feitas de dúvidas, de perguntas sem resposta, mas há algo nelas que brilha com a luz que não vem de fora. E ali, no meio do espaço físico, no silêncio que já não é tão absoluto, o Abstrato Homem entende que ser indefinido é, de certa forma, a maior forma de liberdade que se pode ter. Porque ser abstrato é poder mudar, crescer, e nunca se prender ao que os outros esperam que você seja.

E assim, ele sorri. Um sorriso que ninguém vê, um sorriso que não faz som, mas que existe. Porque no fim, o Abstrato Homem descobriu que sua força está em não ser uma única coisa, em não se limitar ao espaço ou ao tempo. Sua força está em ser, a cada momento, algo novo, algo que nem ele mesmo sabe o que será. E é nesse instante que o silêncio absoluto finalmente se transforma, tornando-se um eco suave de todas as possibilidades que ainda estão por vir.

- Enfim chegamos no Porto de Algodoal!


FIM

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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0897



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