* N° 0885 - CONEXÕES PERDIDAS EM MAYANDEUA - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
Em meio ao balançar preguiçoso da rede e ao cheiro salgado do mar de Mayandeua, o homem observava as ondas do Atlântico avançarem e recuarem, tão imprevisíveis quanto a conexão de internet que ele tentava manter. Eram duas da tarde, horário em que o sol se fazia soberano, enquanto o cachorro, um vira-lata amigo e quase cibernético, repousava ao seu lado. Ele, o homem, tentava domesticar as letrinhas que pulavam na tela de seu velho computador – um modelo 486, uma relíquia tecnológica que parecia desenterrada de uma era recém-passada.
Sentado na varanda de sua cabana, com os pés descalços acariciando a areia fina e quente, ele fazia mais uma tentativa de se conectar ao mundo lá fora. As siglas misteriosas invadiam sua mente: gov, net, org, tmp, nom. Para ele, essas letrinhas eram como formiguinhas digitais, devorando sua paciência e semeando a inquietação. Seus dedos guiavam o "mouse", aquele dispositivo antigo com a pesada bola de rolagem, sentindo-se cada vez mais imerso nesse labirinto virtual que, apesar de global, ainda se sentia tão distante para quem vivia na tranquilidade de Mayandeua.
O tempo parecia suspenso enquanto ele navegava, ou melhor, tentava navegar, entre as siglas e os links que se embaralhavam diante dos seus olhos. Psi, eng, med, adv — a tela era invadida por essas formiguinhas que pareciam segredar profissões e especialidades que, naquela tarde, em nada ajudavam a sua jornada de descobrimento. O cachorro ao lado apenas ressonava, indiferente às preocupações digitais de seu dono. Afinal, para o cão, a vida era simples: havia comida, sombra e, claro, o mar.
Às três e meia da tarde, uma letargia invadia o ar, lenta como a brisa morna que vinha do oceano. O cachorro estirado ao seu lado parecia ter se transformado em uma representação pura de modorra – aquela preguiça tropical, profunda e inescapável. O homem olhava a tela, onde as letrinhas continuavam a desfilar, cada vez mais abstratas e irreconhecíveis. A conexão se arrastava, teimosa, e ele se perguntava se algum dia realmente compreenderia essa nova linguagem tecnológica que parecia crescer como uma maré de siglas e números, invadindo as vidas com promessas de facilidades, mas trazendo com elas uma estranha inquietação.
No fundo, ele sabia que o mundo lá fora, conectado e pulsante, era algo de uma complexidade absurda. A vida em Mayandeua, com suas areias claras e o barulho constante do mar, era mais fácil, mais real. Mas, mesmo assim, o homem sentia essa necessidade de pertencer, de estar “antenado” – uma tentativa de equilibrar as raízes profundas que fincava no chão arenoso da ilha com as asas digitais que a internet prometia dar. E então, num suspiro resignado, ele viu a tela congelar. A rede caía novamente, interrompendo qualquer chance de diálogo com aquele mundo distante.
O cachorro, alheio à frustração humana, rolava preguiçosamente para o lado, talvez sonhando com as próximas aventuras que teria entre as dunas ou os coqueirais da ilha. O homem, por sua vez, largou o "mouse" e se recostou na cadeira de palha. As letrinhas continuavam, invisíveis agora, flutuando em sua mente, mas ele já não estava mais tão preocupado. Naquele momento, o mar parecia falar mais alto do que qualquer tentativa de conexão digital. Talvez fosse o jeito da natureza dizer que, por ora, era hora de se desconectar e voltar a sentir o vento, o sol e a água salgada entre os dedos dos pés.
E, assim, enquanto o mundo seguia acelerado e incerto lá fora, ele encontrava um pouco de paz em sua ilha, certo de que, na próxima tentativa, as letrinhas ainda estariam lá, esperando para serem decifradas. Ou talvez, no fundo, não houvesse nada de urgente nelas. Afinal, a vida sempre seria mais simples nos recantos escondidos de Mayandeua.
- Primolius desconectando mais uma vez...
FIM
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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0885