* Nº 0868 - A ARTE DO VERBO CUTUCAR - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
Na escola, cutucar era parte do aprendizado social, um hábito tão comum quanto as brincadeiras no recreio. Durante as aulas, o menino João, sentado ao lado do colega, vivia cutucando por baixo da mesa. Às vezes, era para pedir uma borracha, outras, para fazer uma pergunta sobre a matéria. A professora, sempre atenta, não demorava a perceber. "Meninos, parem de se cutucar e prestem atenção!", dizia ela, tentando manter a ordem. Mas a verdade era que, para aqueles garotos, o cutucar era uma forma de manter a conexão, de dizer "estou aqui, me ajuda". Era uma cumplicidade silenciosa, uma troca de solidariedade entre amigos que as palavras não conseguiam expressar da mesma maneira.
Fora da escola, nas ruas e nas brincadeiras ao ar livre, cutucar se transformava em uma verdadeira aventura. Com um pedaço de pau em mãos, as crianças cutucavam buracos na terra, movidas pela curiosidade de descobrir o que poderia estar escondido ali. Cada cutucada revelava uma surpresa: um tatu-bola encolhido, formigas apressadas ou, com sorte, um pequeno tesouro perdido. Aquele gesto simples era uma janela para o desconhecido, um convite à exploração, à descoberta do mundo ao redor.
Em casa, a paciência da mãe era admirável, mas até ela tinha seus limites. "Não me cutuca!", exclamava, enquanto preparava o jantar, sentindo o toque insistente do filho em suas costas. Claro que, como toda criança, ele achava graça em continuar até receber um olhar sério de aviso. Aquele olhar era o sinal de que era hora de parar antes que a brincadeira se transformasse em algo mais sério. Mas, no fundo, o ato de cutucar era mais do que uma simples travessura; era um pedido de atenção, uma maneira de lembrar que ele estava ali, presente, querendo ser notado.
Cutucar era mais do que um gesto mecânico. Naquela época, era uma forma de comunicação cheia de nuances, um jeito de se conectar com os outros sem precisar dizer uma palavra. O toque, por mais leve que fosse, carregava uma mensagem. Podia ser um chamado, uma provocação, ou simplesmente uma maneira de lembrar que, apesar de tudo, ninguém estava sozinho.
Hoje, ao lembrar desses momentos, percebe-se que cutucar era uma arte. A arte de se fazer presente, de manter a conexão viva, mesmo que através de um gesto tão pequeno. E, talvez, o que resta desses tempos é a lembrança de que, às vezes, um simples cutucar pode dizer mais do que qualquer palavra jamais diria.
- Hoje em dia, cutucamos pequenas telas!
FIM
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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0868