* Nº 0612 - CONTATOS V (METAL) - SÉRIE: CONTOS FANTÁSTICOS DE MAYANDEUA
Era uma noite como nenhuma outra nas águas de Mayandeua- Algodoal. O barco de Ferguemer e Hertinus deslizava lentamente sobre as ondas tranquilas, mas algo no ar parecia diferente – um peso invisível que pressionava seus peitos e fazia o silêncio soar como uma ameaça. O céu estava coberto por nuvens densas, exceto por uma única abertura onde a lua brilhava como um olho vigilante. Parecia observá-los, como se soubesse que algo extraordinário estava prestes a acontecer.
Foi então que o som veio: um rugido profundo, quase visceral, que ecoou não apenas no mar, mas dentro de suas próprias almas. Era como se o oceano estivesse vivo e respirasse pela primeira vez em séculos. No horizonte, uma forma colossal emergiu das águas – uma nave em forma de peixe, com escamas metálicas que refletiam a luz da lua como fragmentos de cristal. Ela pulsava com uma energia estranha, como se fosse feita de algo entre matéria e magia. Os pescadores ficaram paralisados, incapazes de compreender o que viam. A nave emanava luzes que dançavam como auroras boreais subaquáticas, projetando reflexos cintilantes sobre as ondas. Mas o que mais os assustava era o cheiro – uma mistura nauseante de podridão marinha e metal derretido, como se o próprio abismo tivesse vomitado algo antigo e esquecido.
Enquanto a nave pairava acima deles, Ferguemer e Hertinus começaram a sentir os primeiros sinais de algo terrível. Uma sede insaciável tomou conta de seus corpos, mesmo após beberem litros de água. Suas forças se esvaíam rapidamente, como se a própria essência de suas vidas estivesse sendo sugada. Eles tentaram remar para longe, mas era como se uma força magnética os prendesse ao local. Então, eles viram: dentro da nave, havia tanques de água cristalina, onde dezenas de sereias nadavam freneticamente. Seus cabelos fluíam como algas douradas, e seus olhos brilhavam como uma chama azul. Elas cantavam uma melodia hipnótica, cujas notas pareciam vibrar diretamente em seus ossos. Era um cântico triste, carregado de dor e desespero, como se implorassem por ajuda.
Mas havia algo ainda mais perturbador. Entre as sereias, algumas tinham formas distorcidas – rostos humanos fundidos com traços de peixes, braços que terminavam em barbatanas afiadas e caudas que brilhavam com luz própria. Essas criaturas pareciam vigiar as outras, como carcereiras de um reino submerso. Ferguemer tentou gritar, mas sua voz saiu como um sussurro rouco. Hertinus agarrou-se à borda do barco, tremendo tanto que suas mãos pareciam prestes a se despedaçar. Ambos sentiram que estavam presenciando algo proibido, algo que jamais deveria ser visto por olhos humanos.
De repente, a nave-peixe começou a emitir um zumbido grave, como o ronronar de uma máquina gigantesca. As águas ao redor começaram a girar, formando um redemoinho que parecia abrir um portal para outro mundo. Luzes azuis e verdes surgiram das profundezas, iluminando formas titânicas que nadavam abaixo da superfície – criaturas que lembravam lendas antigas do mar. Uma delas emergiu brevemente: uma serpente marinha com olhos flamejantes e mandíbulas capazes de engolir navios inteiros. Ela encarou os pescadores por um momento antes de desaparecer novamente nas águas escuras.
Ferguemer e Hertinus sentiram suas mentes começarem a falhar. Fragmentos de memórias estranhas invadiram seus pensamentos – visões de cidades submersas, templos de coral e rituais realizados sob a luz de luas vermelhas. Eles ouviram vozes em línguas desconhecidas, palavras que pareciam gravadas em suas almas desde tempos imemoriais. Antes que perdessem completamente a consciência, a nave-peixe lançou um feixe de luz sobre o barco. Tudo ao redor começou a desaparecer – o mar, o céu, até mesmo o som das ondas. Quando acordaram, estavam na praia de Ajuruteua lá para o lado de Bragança, sem lembrar como haviam chegado lá.
Nos dias seguintes, Ferguemer e Hertinus perceberam que algo havia mudado neles. Suas peles começaram a exalar um cheiro de peixe podre, que nenhum banho conseguia eliminar. Suas vozes adquiriram um tom diferente, como se estivessem aprendendo uma nova língua. Durante as noites de lua cheia, eles murmuravam palavras incompreensíveis enquanto fitavam o horizonte, como se estivessem em comunicação com algo além do mundo humano.
Os moradores da região começaram a evitar os dois homens, temendo que estivessem amaldiçoados. Alguns diziam que eles haviam sido marcados pelas sereias; outros acreditavam que eram agora servos das águas do mar. Mas o verdadeiro mistério estava apenas começando.
Anos depois, durante uma noite de tempestade, relatos começaram a surgir de pescadores que afirmavam ter visto um grande peixe que voava nas principais partes da ilha de Mayandeua e Algodoal. Dessa vez, ela não estava sozinha. Ao seu lado, flutuavam pequenas embarcações de vidro preto, tripuladas por figuras com pele translúcida e olhos que brilhavam como estrelas. Esses seres pareciam estudar os humanos com curiosidade fria, como cientistas observando espécimes em um laboratório. Alguns dizem que Ferguemer e Hertinus foram vistos entrando voluntariamente em uma dessas naves, deixando para trás suas vidas terrenas. A história da nave-peixe cresceu ao longo dos anos, transformando-se em uma narrativa contada nas pescarias da região. Para alguns, ela é uma prova da existência de mundos paralelos; para outros, um aviso de que o oceano guarda segredos que nunca deveriam ser revelados. Dizem que, nas noites mais escuras, quando o mar está calmo e o céu sem estrelas, a nave-peixe retorna para escolher novos viajantes. Ela busca aqueles que têm coragem suficiente para enfrentar o desconhecido – ou talvez aqueles que já estão conectados a ela, através de cicatrizes invisíveis deixadas pelo encontro anterior.
Ninguém sabe ao certo qual é o propósito da nave-peixe ou o destino das sereias aprisionadas. Mas uma coisa é certa: o oceano nunca revelará todos os seus segredos. Ele guarda suas histórias nas profundezas, esperando pacientemente pelo próximo capítulo.
FIM
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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0612


