* Nº 0508 - VERSÃO VÍDEO: HOMEM I - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA

 


Carta de 1998 ( Relendo na ilha)  

Em uma cidade onde o brilho das telas ofuscava até mesmo o sol, a vida era moldada por pixels e narrativas fabricadas. Cada casa era um santuário moderno, onde cadeiras e sofás sustentavam os devotos da contemporaneidade. O protagonista dessa história, como tantos outros, começava seu ritual diário no divã — seu trono particular, onde o controle remoto era o cetro de um reino virtual.  

Com um clique, ele comandava mundos. Mudava cenários, personagens e destinos como um deus de bolso. As novelas o seduziam com promessas de verdades emocionantes, enquanto a vida real, com suas imperfeições e pausas incômodas, desaparecia na dança das luzes e dos sons.  Ao redor, o silêncio dominava. As vozes da casa eram abafadas pela dramaturgia que invadia as telas. As conexões humanas, antes feitas de olhares e toques, foram substituídas por enredos artificiais. No lugar das conversas, apenas o brilho estático de televisores. O homem, imerso em seu estado de letargia tecnológica, acreditava controlar sua vida enquanto apertava os botões do controle remoto, mas, na verdade, era ele quem estava sendo controlado.  

As imagens eram nítidas, as cores vibrantes, mas o vazio era palpável. Mesmo diante de tanto espetáculo, a ausência de calor humano se fazia sentir. O homem, que parecia tão conectado ao mundo, vivia uma solidão profunda, cercado por astros fictícios que jamais devolveriam seu olhar.  Enquanto ele suspirava pelas novidades trazidas pelos eleitos da fama, a realidade seguia seu curso. Em algum lugar distante, bombas caíam, vidas se perdiam, e histórias reais eram escritas com sangue e dor. Mas nada disso penetrava a bolha de fantasia que envolvia aquele quarto.  

Do alto, Saturno e Júpiter giravam silenciosos em suas órbitas, testemunhando, talvez com perplexidade, o pequeno planeta azul onde os humanos haviam se isolado em seus próprios mundos. No divã moderno, o homem respirava luz, mas estava surdo para o universo ao seu redor.  Era uma guerra invisível, não de armas, mas de sentimentos. A batalha não acontecia no campo, mas no coração das pessoas. No lugar de conexão, havia desconexão; no lugar de presença, ausência. A tecnologia, com suas cores vibrantes e sons perfeitos, prometia proximidade, mas entregava solidão.  

E assim, o homem continuava sua jornada. Vinte e cinco horas de ilusões, vagando em um mar de imagens e sons que preenchiam o silêncio, mas não a alma. Ele era apenas mais um astro em um universo de solidão coletiva, girando em torno de uma tela que nunca lhe devolveria o calor de um abraço ou a profundidade de um olhar verdadeiro.  

No final, restava apenas o eco do vazio, embalado pela luz fria da modernidade. Um lembrete melancólico de que, às vezes, na busca pela conexão, acabamos mais distantes do que nunca.  

- Dizem que o próximo inimigo será outra telinha!


FIM

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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0508


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