* Nº 0490 - PARÁBOLA URBANA - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
No amparo da noite, uma cena tão comum e ao mesmo tempo tão dolorosa se desenrola nas lixeiras e depósitos de lixo da cidade. Um pequeno rato cinzento trava uma luta desesperada pela sobrevivência, tornando-se uma fábula urbana e uma intrigante crônica de nossa sociedade. O rato vasculha, afobadamente, um monte de lixo chamuscado, em busca de qualquer pedaço de alimento que possa ter sobrevivido ao recente incêndio, provocado por um descarte irresponsável. Suas patinhas tremem ao contato com as cinzas ainda quentes, seus olhos aflitos refletem a dura realidade de sua existência. Seu pequeno nariz trêmulo fareja uma combinação desagradável de fumaça e resquícios do que um dia foi comida.
Curiosamente, o desespero deste humilde roedor nos serve como um espelho incômodo. Sua luta pela sobrevivência diz mais sobre nós enquanto sociedade do que gostaríamos de admitir. Ratos são, em muitos casos, o reflexo da nossa negligência, o resultado inevitável de nossas ações e descartes. A imagem deste rato, procurando comida no lixo queimado, é um chamado para contemplar nossas próprias escolhas e a maneira como lidamos com nosso planeta. Somos nós que produzimos o lixo que agora é a única opção de alimentação para este pequeno ser. Somos nós que, através de nossas ações, criamos as difíceis circunstâncias de sua vida.
Ao iluminar as áreas escuras de nossa coexistência com a natureza, essa imagem do rato se torna uma parábola urbana. Nos relembra da condição desoladora que a muitas espécies impomos, da desconsideração de um equilíbrio ambiental em favor de um progresso autodestrutivo. Enquanto o rato persiste em sua busca desesperada, a cidade ao redor dorme. Luzes apagadas, janelas fechadas, e o murmúrio distante do tráfego noturno. Em um canto escuro, longe dos olhares humanos, a luta pela vida continua. É uma cena que poucos notam, mas que encapsula uma verdade maior sobre nossa existência.
O rato, em sua incansável busca, não apenas procura alimento. Ele nos força a encarar as consequências de nossas ações, a refletir sobre o impacto de nossa negligência ambiental. Cada pedaço de lixo, cada cinza resultante de um incêndio irresponsável, conta uma história de desrespeito e descaso. E assim, através dos olhos aflitos deste rato, vemos nossa própria imagem refletida de volta para nós. O lixo que produzimos, as cinzas das escolhas mal feitas, tudo isso ecoando a realidade que forjamos para nós e para as criaturas que nos rodeiam. Somos parte de um todo interconectado, onde até mesmo a mais humilde das criaturas nos lembra que nossas ações têm consequências. Sem querer, este pequeno rato se torna uma crônica viva de nosso tempo e nossas escolhas, um aceno gritante para a urgência da sustentabilidade e do respeito pela vida em todas as suas formas.
A cidade, com suas luzes brilhantes e sombras profundas, continua a pulsar com vida enquanto a maioria de seus habitantes dorme. Mas, nas margens dessa urbanidade, a luta do rato é um lembrete tangível do mundo que criamos. Ele é um testemunho silencioso de uma sociedade que precisa despertar para a sua responsabilidade. Na tranquilidade da noite, enquanto muitos sonham, o rato ainda está lá, sua busca desesperada é um lembrete constante da necessidade de mudança. Sua existência frágil e determinada nos conta uma história que nós, quem sabe, ainda tenhamos tempo de reescrever. Uma crônica ao vivo de uma sociedade que precisa acordar para sua responsabilidade, para que possamos construir um futuro onde todas as formas de vida sejam respeitadas e protegidas.
- Que as nossas ilhas estejam protegidas!
FIM
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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0490


