OLIVETTI E SUAS METÁFORAS Nº 0438 - CRÔNICA

 



 Ele tinha uma dificuldade enorme para localizar um livro em seu quarto. Os catálogos de busca eram defeituosos, os dados se multiplicavam sem ordem, os papéis se espalhavam por toda a parte e, às vezes, ele encontrava números de telefones de pessoas que nem lembrava mais quem eram. Numa noite de domingo, ele se perguntava como achar o paradeiro de uma obra de Fernando Pessoa naquele universo de vocábulos. Uma lembrança agitava a sua memória: estava no criado mudo.

Remexendo na gaveta, ele não só achou o livro, mas também algumas cartas de recomendação do seu antigo professor de Literatura. Ele releu o conteúdo e percebeu que, naquela época, as suas ideias eram mais claras quando transportadas para o papel transversalmente a lápis. Era um segredo guardado, uma crítica perfeita pelos planos que deixara para trás. Ele fechou a gaveta lentamente, analisando algumas palavras do seu antigo professor. Deixou a obra encontrada de Fernando na cama e foi direto para a Olivetti Lettera 82, que ainda estava exposta na escrivaninha da sala. Sentou-se, olhou para a máquina e um turbilhão de ideias saltou na lentidão dos dedos que esqueceram as formas didáticas de datilografar. Um texto foi gerado.
Os livros têm as páginas brancas, as cartas têm as folhas brancas, a culpa não é totalmente branca. Só os olhos imaginam o branco do papel, pois nas entrelinhas das palavras há sempre alguma sujeira escondida. Vitoriosas são as canetas e as lapiseiras. Vitoriosas são as máquinas de escrever. Vitoriosos são os dedos. Passagem para o inesperado, associação de letrinhas inteligentes, cúbicos centímetros de poesia.
De posse de bilhetes e cartas, ele escrevia naquela destemida hora de críticas… Assim, folhas eram surradas, rasuradas, jogadas no lixeiro. Transporte de sonhos impossíveis, pluviométrico aos olhos de um escritor inconformado. Silêncio na noite…
Ele escrevia para ela e além dela, sua Olivetti.
Observando o papel após o documento editado (ou poesia), ele o guardou sem pressa na escrivaninha, que estava cheia de outros afazeres. Olhou para o diploma na parede e lá na rua alguém buzinava e ele parecia mais calmo prazerosamente. Na realidade, sentia-se um modelo semelhante aos repórteres televisivos de domingo.
O sono chegara devagar, ele se sentiu cansado, era hora de dormir. Mas antes, visitou a geladeira, estranhas fragrâncias vinham do congelador. Bebeu um copo de água e bocejou olhando para a luz do estimado refrigerador. Confessou: era realmente a hora de dormir. Entrou no quarto, uma luz penetrava iluminando o guarda-roupa embutido, escutou o ladrido de um cão sem dono e se deitou na cama. No momento, o abajur em forma de anjo despejava uma paz calculável e ocultava a sua fraqueza de luzes.
Ele pegou o livro que procurara, assentou ao peito o pesado volume e disse: - Pessoa. Hoje tu vais aguardar…

O resto foi o abrir dos olhos em pleno meio-dia onde a Olivetti esperava-o para dizer-lhe bom dia. Enquanto o gato agitado arranhava os seus pés.

 FIM 
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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0438


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