* Nº 0326 - DEGELO HUMANO - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
Era uma vez um homem que se sentia perdido em sua própria vida, como se estivesse à deriva em um oceano de incertezas. Na busca por algo que pudesse lhe dar sentido e propósito, ele encontrou a água — esse elemento misterioso e transformador. Curioso com o poder da água de moldar tudo ao seu redor, ele mergulhou nela, deixando-se envolver por sua fluidez. No instante em que entrou em contato com aquele universo líquido, suas vestes de homem desmancharam-se como se fossem feitas de névoa. A água tinha esse poder: dissolvia anseios, derretia o peito endurecido e revelava uma coragem até então desconhecida.
A água, ora em seu estado sólido como gelo, mostrava-se incolor, mas repleta de rachaduras e deslizes interiores. No entanto, era exatamente essa forma que lhe conferia força. Do estado sólido ao líquido, cada transição trazia uma lição sobre flexibilidade e resistência. Ele começou a enxergar na água não apenas um elemento natural, mas um reflexo de si mesmo — mutável, resiliente, essencial. Assim, encontrou nela um novo propósito: preservá-la e honrá-la, reconhecendo-a como fonte de vida e inspiração.
Nas suas andanças, o homem descobriu Mayandeua, uma ilha mágica onde o mar sabia conversar outros assuntos e segredos. O mar de Mayandeua não era uma massa de água salgada; era um ser vivo, pulsante, que comunicava com aqueles dispostos a ouvir. A ilha, com suas praias e mangueiros, coqueiros e cajueiros dançantes ao ritmo do vento, tornou-se o cenário perfeito para sua jornada interior. Explorar as margens de Mayandeua era um convite constante à reflexão. As ondas, quebrando suavemente contra a areia, ensinavam a dança do carimbó, reconhecimento que existem civilizações submersas, criaturas mitológicas e ciclos eternos de renovação. Ele sentia uma conexão profunda com o mar, como se cada maré alta representasse seus momentos de glória e realização, e cada maré baixa, suas fases de introspecção e renovação.
Os pescadores de Mayandeua tornaram-se seus mestres. Homens de sabedoria ancestral, eles capturavam não apenas peixes, mas também fragmentos de ensinamentos transmitidos de várias marés e de gerações ocultas em seus rostos . Cada anzol lançado ao mar era uma prece silenciosa, um pacto de harmonia entre o homem e a natureza. Observando-os, ele aprendeu que a verdadeira abundância não estava no que se tirava do mar, mas no equilíbrio que se mantinha com ele.
Uma noite, sob um céu surpreendente, pontilhado de estrelas refletidas nas águas calmas, ele ouviu o canto das sereias. Melodias hipnóticas ecoaram pelo ar, tocando sua alma de maneira indescritível. As sereias, espíritos guardiãs daquele mar e lagos, revelaram verdades ocultas sobre o equilíbrio delicado do ecossistema marinho e a necessidade urgente de protegê-lo. Transformado por essas revelações, o homem encontrou seu verdadeiro propósito: escrever para o mar. Suas palavras, agora carregadas de uma nova sensibilidade, tornaram-se pontes entre o ser humano e a natureza. Ele registrava em poesias e crônicas as histórias do mar, as vidas entrelaçadas dos seres que nele habitavam e a eterna dança das águas. Sua missão transcendia a busca pessoal; era um chamado para inspirar outros a valorizar e proteger aquele lugar.
À noite, sob o manto estrelado refletido no oceano, ele sentia-se completo. Cada história contada, cada verso escrito, era um mergulho na sabedoria infinita do mar. E a água, que um dia trouxe-lhe rejuvenescimento, agora corria eternamente em suas veias, fluindo com a força e serenidade de uma maré que nunca cessa. Ele havia se tornado parte do mar, e o mar, parte dele.
- Coisas de Maya e Algodoal!
FIM
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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0326


