* Nº 0361 - DOMINGOS CHEIROSOS - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA

 


(Direto de Mayandeua)  

Naquele domingo de outubro, quando o sol despertou mais cedo para beijar as terras do Pará, a casa da vovó estava em silêncio reverente. Era o dia do Círio de Nazaré, uma festa que não era apenas tradição, mas um reencontro sagrado com as raízes, a fé e a família. A toalha de retalhos, há muito guardada para ocasiões especiais, voltava a ser protagonista sobre a mesa. Entrelaçada de cores e memórias, ela trazia consigo o cheiro de ervas, lembranças de um tempo em que as mãos ágeis de vovó a transformavam em obra-prima.

Lembro-me bem de quando era menino, assistindo à vovó enquanto ela estendia o pano com uma calma solene, suas mãos sexagenárias movendo-se com a precisão de quem domina o ofício. A toalha, apesar dos anos e dos muitos almoços em família, conservava um ar de suavidade quase escrava, uma devoção aos detalhes que só vovó sabia imprimir. Cada ponto, cada cor, narrava uma história que se confundia com a própria história da nossa família. Com o tempo, os retalhos foram desbotando, mas a importância daquela toalha não se desfez. Pelo contrário, tornou-se um símbolo de permanência em meio à passagem do tempo. Em cada encontro de Círio, era ela que sustentava os talheres e as louças, como que segurando a estrutura de uma tradição que nunca vacilava. Vovó, mais grave a cada ano, metrificava seu trabalho com a força e a sabedoria acumuladas pela vida.

A mesa, enfim, estava pronta. A toalha, já não tão vibrante quanto antes, mas ainda plena de significados, se estendia como um poema fotográfico. Particularidades paraenses ecoavam em cada detalhe: o pato, revelado à mesa, exalava um cheiro que se misturava com a fragrância das ervas. Vovó sorriu, e parecia que a toalha também sorria com ela. As cores, os cheiros, as tradições – tudo se fundia em uma transparência de um domingo especial, um reencontro familiar que só o Círio de Nazaré poderia proporcionar. Lá fora, as ruas de Belém estavam vivas. A procissão avançava, misturando infância, puberdade e velhice em um só fluxo de fé. Homens e mulheres, análogos na alma, formavam uma salada de cores que explodia em rezas e cânticos. As avenidas, decoradas como se também quisessem participar, pareciam cantar em coro com os romeiros. O sol, carinhosamente, também participava da festa, abençoando com sua luz aquele cenário ornado de flores e casas antigas, cujas janelas e portas traziam para fora as histórias de suas famílias seculares.

As mangueiras, majestosas, ofereciam sua sombra verde-oliva para os que passavam, como se quisessem proteger os peregrinos que caminhavam pelas passarelas da Fé. O Círio era mais do que uma celebração religiosa; era uma comunhão com a própria terra, com as folhas benditas que sussurravam bênçãos para todos que cruzavam seu caminho. No clímax da festa, quando a imagem da Virgem de Nazaré surgiu, os romeiros ergueram seus braços com força renovada. Pés descalços, corda retesada – a procissão era um espetáculo de fé inabalável. Fogos explodiam no céu, enquanto as mãos de todas as cores e tamanhos se estendiam em louvor à Santa. A boiuna, figura mítica da Amazônia, parecia se manifestar na grossa corda que guiava os fiéis. E então, o carro dos anjos passou, trazendo a alegria inocente das crianças que, com olhares deslumbrados, pareciam voar em suas montarias. O Círio de Nazaré, festa única, mostrava sua face mais pura e comovente. Lá em cima, da sacada da casa de vovó, eu observava tudo, sentindo-me parte daquela grande corrente de fé e tradição.

A toalha de retalhos, agora desbotada, mas eternamente significativa, continuava a sustentar nossa história. E, na mesa da vovó, ao lado do pato cuidadosamente preparado, o Círio de Nazaré se materializava em forma de memórias que, ano após ano, nos lembravam de quem somos e de onde viemos. Assim, naquela manhã de outubro, com o sol a nos abençoar, nós também sorrimos – tal como a toalha de retalhos, que guardava em seus fios o segredo de tantas gerações.

- Um pato exposto á mesa!

  

FIM 

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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0361




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