Nº 0337 - A CASA DE MUITOS DO NORTE - CRÔNICA





Carta Pensamento (Direto de Mayandeua)

Assim começa… Na varanda, as conversas e piadas adultas fluíam enquanto irmãos se acomodavam nas almofadas e primos e primas se deitavam no chão sobre os tapetes de retalhos coloridos pelas mãos das costureiras do interior. Papai e mamãe sorriam constantemente na rede atada e, de vez em quando, trocavam carícias com as mãos, algo que só podíamos presenciar nas casas do interior. Nas outras redes atadas, o falatório de histórias era constante, com alguém no centro imitando algum cantor. E assim, os vizinhos acreditavam que aquela casa era sempre feliz. Eram sempre as 18h45, o melhor e mais querido momento da minha infância. Ainda sentíamos o cheiro da alfazema de minha avó, sempre arrumada com suas grandes saias e cordões que adornavam aquela mulher forte. Em sua cadeira de palha, ela balançava-se em um compasso determinado, fingindo dormir, mas com um sorriso de felicidade no canto da boca.

Na mesa de refeições, decorada por uma toalha branquíssima de rendas nordestinas, cintilava o brilho e o perfume de ervas de alfazema engomadas com maestria por minhas tias. Ao centro, uma grande gaveta com dezenas de talheres tão pesados que nas mãos desta velha criança refletiam um espelho diferente aos olhos deste que vos descreve tais momentos. Na ponta da mesa, um grande vaso de cerâmica acomodava as mais belas flores de inverno. Quando murchavam, transpiravam a herança de uma nova vida e certamente outras flores viriam nas primeiras horas do dia para dar continuidade àquela beleza. Bem cedinho, já estavam lá papoulas, rosas, jasmins e até flores de maracujazeiro para engalanar a grande cozinha. À mesa, o azeite era português e os temperos aromatizantes exalavam pela cozinha. Xerimbabos, frutas e pães caseiros deleitavam os olhos deste menino… Lembro-me de sentar à mesa quando era criança. O azeite era português, assim como os temperos aromáticos que enchiam a grande cozinha. Xerimbabos, frutas e pães caseiros encantavam meus olhos. Uma prece era realizada, mas eu devo confessar que nunca fui muito de rezar naquele momento. Enquanto todos tinham os olhos fechados, eu dava uma espiada e eternizava aquele momento único em minha memória. A casa estava silenciosa.

Depois do jantar vinham as sobremesas: pudins, frutas, café. Ficávamos à mesa por mais meia hora. Outros sorrisos apareciam nos rostos. Nesse momento já se falava dos afazeres do dia seguinte e é claro do que iríamos comer no almoço. Pratos, panelas e talheres expostos e saciados pela gula de toda a família. Na hora de lavar e limpar a cozinha era outra festa… As mulheres já falavam baixinho ou fofocavam da vida alheia. Direcionavam os segredos íntimos de casais e os futuros namorados daquelas mulheres que eu tanto amei. Reiniciava o barulho na casa. Na varanda voltavam-se os homens e alguns vizinhos, onde proseavam sobre a colheita, o tempo e, de vez em quando, zombavam dos referidos apelidos de cada um em sua infância. E lá no terreiro brincávamos de roda, cabra-cega, macaca e cai no poço… Corríamos e corríamos no terreiro onde nos entregávamos à liberdade de podermos crescer por entre as ingazeiras e as ameixeiras daquele recanto de poesia.

Ao final, lá pelas vinte e três horas, tomávamos o derradeiro banho e é claro o mingau de aveia que minha vó trazia para cada um de nós. Ela nos beijava e dizia: “Deus te faça sempre feliz!” A janela aberta contemplava o tempo… E no fundo da rede, lá estava eu… Olhando o lampião e as estrelas… Pareciam sumir com as minhas imagens de menino caboclo… No pensamento um sonho… Um dia poder escrever todas as aventuras da minha infância.

- Boa noite vovó!


FIM 

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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0337


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