* N° 0052 - UM AVOADO - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
De cócoras ao pé de fogo, o caboclo medita em silêncio. Não é um silêncio vazio, mas repleto da vida que pulsa ao seu redor. Ele está ali, presente, mergulhado no agora, enquanto o tempo parece diluir-se nas chamas que dançam à sua frente. É um homem simples, desses que a vida moldou com as mãos calejadas do trabalho e os olhos atentos às lições da natureza.
Peixe aberto... Sobre as brasas, ele repousa, revelado ao calor das chamas que lambem suas escamas prateadas. Uma faca gasta, companheira fiel de tantos dias, trabalha febrilmente para retirar aquelas pequenas placas que protegem o corpo do animal. O movimento é quase hipnótico, como se cada gesto fosse parte de uma coreografia ancestral, ensinada por avós e bisavós que também souberam extrair sustento das águas e do fogo.
De cócoras ao pé de fogo, o caboclo canta baixinho. Sua voz rouca ecoa suave, quase inaudível, mas carregada de memórias. É uma canção antiga, legado do Mestre Chico Braga, cujo nome ainda reverbera nos sussurros das matas e lagos. A melodia traz lembranças de tardes ensolaradas, de redes balançando sob o sol morno, de histórias contadas ao luar. A varinha em sua mão cutuca as brasas, alimentando o fogo que lentamente transforma o peixe em um banquete singelo, mas completo.
Peixe assando, quase concluído... Ele observa com atenção, sabendo que o ponto certo não pode ser medido por relógios ou termômetros. Está na textura da carne, no aroma que começa a se espalhar pelo ar, no instinto apurado de quem aprendeu a cozinhar com o coração e os sentidos. Enquanto isso, o mundo lá fora parece distante, quase irrelevante. Ali, ao pé do fogo, o caboclo desconhece as pressas urbanas, as notícias alarmantes, as correrias incessantes. Aqui, tudo tem seu tempo, tudo flui no ritmo da natureza.
De cócoras ao pé de fogo... Ele tira o peixe da brasa com cuidado. É uma pescada bonita, generosa, que parece sorrir em gratidão por ter sido escolhida para aquele momento. Talvez seja apenas impressão, mas há algo de poético nisso: o ciclo da vida sendo celebrado em cada pedaço de carne macia, em cada gota de gordura que escorre sobre a casca de folha usada como prato improvisado. O caboclo sorri também. Um sorriso discreto, quase imperceptível, mas que denuncia uma felicidade genuína. Felicidade que não vem de grandes conquistas ou luxos, mas da simplicidade de estar vivo, de ter comida no prato e um céu azul sobre a cabeça.
De cócoras ao pé de fogo, uma grande folha verde repousa em suas mãos. Nela, a farinha é despejada com delicadeza, como se fosse um ritual sagrado. A cuia, esculpida à mão, guarda o pó branco que complementará o almoço. Tudo ali é natural, orgânico, sem intermediários industriais. O caboclo sabe que a terra dá tudo o que ele precisa; basta saber colher e agradecer.
- Pássaros cantando no ninhal... Seu ouvido aguçado capta o som distante dos pássaros. Eles parecem acompanhar sua canção, entoando notas que se misturam ao crepitar das chamas e ao farfalhar das folhas ao vento. É um concerto involuntário, mas perfeito em sua harmonia.
Ali, ao pé do fogo, o caboclo não é apenas um homem preparando sua refeição. Ele é guardião de uma cultura, portador de saberes que resistem ao tempo e à modernidade. Cada gesto seu é um elo com o passado, uma reverência às raízes que jamais devem ser esquecidas. Enquanto mastiga devagar, saboreando cada pedaço do peixe e cada punhado de farinha, ele pensa – ou talvez nem pense. Apenas vive, plenamente, intensamente, como poucos conseguem fazer hoje em dia.
Ao fundo, o rio e o mar murmura seus segredos eternos. As árvores balançam ao sabor do vento, e o sol, já mais alto, derrama sua luz sobre a cena. Para o caboclo, não há nada mais necessário do que isso: o fogo, o peixe, a farinha e a certeza de que, mesmo em meio à simplicidade, a vida pode ser abundante. E lá em algum lugar... Uma rede de dormir só esperando.
(Cotidiano de Mayandeua)
FIM
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Projeto Literário e Musical Primolius N° 0052

