*Nº 0202- PICADEIRO DA PAULICÉIA - CRÔNICA




Sob o pretexto de cuidar da saúde, o palhaço Estrelinha, conhecido por seu sorriso pintado e sua alma exausta, solicitou ao dono do circo uma licença de quinze dias. Ele desejava profundamente retornar à sua cidade natal, onde os jambeiros em flor emolduravam a paisagem a qualquer hora do dia. A permissão foi concedida, porém com uma condição: metade de seu salário seria retida até o seu retorno. Estrelinha aceitou de bom grado, com o coração cheio de expectativa, pois seu objetivo valia mais que qualquer quantia de dinheiro.

Ao longo de uma série de banhos, Estrelinha lutou para remover toda a maquiagem que cobria anos de trabalho árduo. Embora os brilhos e o cansaço persistissem, eram lembranças indeléveis dos incontáveis espetáculos. Durante esse processo, ele tentava afastar de sua mente os risos falsos que por tanto tempo sustentaram sua lealdade ao circo, uma ocupação que já se tornara entediante há muito tempo. No fundo de sua alma, Estrelinha proclamava sua independência daquele riso insincero. Com um sorriso tímido, olhou para o céu nublado, fez uma oração silenciosa a Nossa Senhora e São Jorge, e deixou para trás os portões do circo, partindo de São Paulo em direção ao Pará, mais especificamente para Maracanã, nos arredores da ilha onde nasceu.

Livre do cárcere dos risos, Estrelinha se dedicou aos preparativos para a viagem. Visitou o brechó mais famoso da capital, onde gastou 20% de seu salário em sapatos, camisas e bermudas. Fez um corte de cabelo rápido e, ao se olhar no espelho da barbearia, viu um homem abatido, mas feliz. Carlius Mendoncial, seu verdadeiro nome, se recordava de Maracanã, de onde estava afastado há mais de quinze anos. Um suspiro profundo selou suas lembranças do picadeiro enquanto ele se dirigia à rodoviária.

Naquela época, São Paulo estava sob um céu carregado de nuvens escuras. Carlius tomou um pingado na esquina da rodoviária e observou os transeuntes, todos parecendo compartilhar a mesma tonalidade cinzenta. Pensou que poderia ser o frio ou talvez a poluição. Assistiu ao noticiário, as mesmas manchetes de sempre. Com a passagem em mãos, sorriu para as pessoas ao seu redor, sabendo que em poucos dias não se sentiria mais tão cinza. Filho de pescadores, Carlius havia perdido seu sotaque praiano e fugido de casa após uma confusão envolvendo um boto, que o levou a ser acusado de ser o pai de uma criança com a filha de um político local. Ameaçado de morte pelo pai da jovem, ele tentou vender alguns pertences, mas sem sucesso, partiu antes do amanhecer, com poucos trocados e roupas. 

Na Rodoviária Central, tomou mais um pingado. Uma lágrima solitária escorreu, não pela nova jornada, mas pela saudade e pelas oportunidades perdidas ao longo dos anos, sem notícias de sua família. Carlius embarcou no ônibus às 20h00, carregando uma mala, uma mochila e um toca-fitas. O ar frio dentro do ônibus fazia a viagem parecer ainda mais longa. As pessoas se ajeitavam em seus assentos quando uma voz suave pediu licença para sentar. Carlius cedeu passagem para a jovem e ambos se acomodaram para a viagem.

O destino sorriu para os dois. Carlius Mendoncial acabou casando com Mariah de Fátima, a companheira da poltrona 23. O primeiro beijo do casal aconteceu em terras goianas, ao som de Milionário e José Rico, com um belo pôr-do-sol ao fundo. Hoje, o extinto Estrelinha vive feliz com sua amada e seus oito filhos em algum canto da Ilha de Mayandeua.

FIM

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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0202

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