* Nº 0215 - NO SILÊNCIO DO BACURIZAL - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA



Ainda sinto o cheiro da noite que se esvai, úmido nas folhas que gotejam a garoa tardia. A cutia, madrugadora e faminta, já está de olho na fruta, calculando o salto. Mayandeua respira em silêncio, um silêncio que é quase uma prece antes do dia explodir em cores e sons. A chuva, mansa, chega como um sussurro, beijando a terra, anunciando mais uma daquelas alvoradas que só estas ilhas sabem pintar.

É um quadro vivo, uma tela onde cada pincelada é um ser, um movimento. Os tucumanzeiros, crescem na espessura da mata, suas folhas pesadas de orvalho, repousando do sereno. Perto do tucumanzeiro, os japiins ensaiam seus cantos agudos, uma trilha sonora particular para o bocejo lento da iguana, espreguiçando-se no conforto de um pau tombado. Até os velhos guaxinins, com sua sabedoria ancestral, parecem encenar o ciclo da vida, brincando de parir novas esperanças. A jiboia desliza, rainha silenciosa, e os macaquinhos, ah, esses se deliciam com o banquete do cupinzeiro, alheios a qualquer filosofia. No ar, canções baixinhas de sabiás apaixonados. E é nesse instante de pura contemplação, quando a alma se aquieta e a gente quase acredita na eternidade daquele momento, que o inesperado rasga a paz.

Um estampido. Seco. Violento.

O Acapú, gigante que testemunhou tantas alvoradas, fragmenta-se. O chão treme com seu tombo, e ele se debruça na terra Maya, devolvendo a ela a matéria que um dia tomou emprestada. O guará, susto rubro na beira do rio - mangue, espanta-se, o coração batendo no ritmo frenético da surpresa. Por um instante, o silêncio que se instala é outro. Não o da prece, mas o do respeito, talvez do luto. Mas a vida, teimosa, não se deixa abater por muito tempo. A natureza pulsa, reacomoda-se.

E a gente suspira, com uma ponta de melancolia e desejo: "Ah! Se a vida fosse consecutivamente deste modo...". Se fosse só a beleza da cutia, o canto do japiim, o namoro do sabiá, sem os estampidos que nos arrancam da calmaria, que nos lembram da fragilidade, da impermanência.

Mas então o vento chega. E ele não pede licença. Abala os bacurizeiros, sacode a ilha com sua força invisível. E Mayandeua, lá no seu centro vital, acorda. Desperta não do sono, mas para a realidade de mais um dia. Um dia que começou com a promessa da garoa e foi cortado pelo tombo do Acapú, mas que segue, impulsionado pelo vento, pela força indomável que reside no coração destas ilhas. A vida, afinal, é essa dança entre a quietude e o estrondo, entre o repouso e o despertar de mais um dia.

- Primolius só olhando...

FIM

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Projeto Literário e Musical Primolius N° 0215

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