* Nº 0214 - A NOITE DO BOI CHEIROSO - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA



Dez horas de prece podem parecer uma eternidade, mas para a alma que espera, são apenas o início E então, como um rio que rompe a barragem, a festa eclodiu na vila paraense. A procissão, antes solene, transmutou-se em festança, e com ela vieram as cores vibrantes dos fitilhos bailando ao vento, o estalar dos aplausos dos moleques, olhos brilhando ante a promessa da noite.
No centro de tudo, ele: o Boi Cheiroso. Não se alimentava de capim, mas da pura e contagiante alegria que emanava da multidão. Compadres e comadres, entre um tapa no pernilongo insistente e um gole de conversa animada, observavam os meninos com seus "jorrões", delícias efêmeras que adoçavam ainda mais o momento. Era a folia paraense em sua essência, o pulsar de um povo, o interesse genuíno por sua própria cultura. Que alegria, de fato!
Os sentimentos, antes contidos pela reza, agora corriam soltos. Meninas, com olhares admirados e sorrisos tímidos, cortejavam a majestade bovina. E o Boi, ah, o Boi! Trazia na testa a estrela dourada, um farol em meio à escuridão festiva, e nos olhos, um reflexo dos risos que o cercavam. O mundo, por algumas horas, parecia feito só de folia. Os senhores, satisfeitos, brindavam com cachaça; as senhoras, em preces renovadas, agradeciam. E o Boi Cheiroso, na praça iluminada, escrevia mais um capítulo de sua história.

A noite avançava, e mais estrelas piscavam no céu, como se os próprios santos, lá do alto, se juntassem à dança. A lua, risonha, banhava o Cheiroso em seu brilho dourado.  Aboios ecoavam, gargantas aquecidas por mais goles de cachaça e licores doces, segredos da vila partilhados em sussurros, atiçando novos amores sob o manto da noite quase eterna. Era a linguagem daqueles homens, valentes produtores da terra e das águas, nobres mentores da tradição, que cantavam e festejavam como se não houvesse amanhã. Depois das dez, a festa continuava, o cortejo bendito, patrimônio vivo de todos os brincantes.

E assim... a crônica da memória nos conta que o Boi Cheiroso se foi. Como ele, muitos outros personagens daquelas noites mágicas talvez nunca mais tenham voltado da mesma forma. Eram épocas de grandes folias, daquelas que se gravam na alma da terra.
Mas a beleza da memória, e da tradição, reside justamente nessa certeza quase teimosa: um dia, certamente, o Boi Cheiroso voltará. Porque o perfume daquela alegria, os segredos daquela vila, a força daquele povo, esses sim, nunca se vão por completo. Ficam pairando no ar, esperando o próximo chamado para a festa de um espetáculo de teor encantado.

- E assim algúm dia foi. 
- E se foi da ilha. 


FIM

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Projeto Literário e Musical Primolius N° 0214

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