*Nº 0045 - MANIFESTO DA CUTIA - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA




Era um dia como outro qualquer na Trilha Encantada, quando um bicho caiu no buraco. As algazarras no bacurizal chamaram a atenção dos animais da floresta. Um odor forte de sangue pairava no ar, emanando da cutia quase defunta, que jazia no fundo do buraco. Macacos, cobras e pássaros se reuniram ao redor, observando o bicho com olhares tristes e murmúrios que pareciam palavras. A floresta, normalmente vibrante e cheia de vida, estava tomada por um silêncio pesado, interrompido apenas pelos sussurros dos animais. Era como se todos compartilhassem a dor da cutia, sentindo a injustiça daquela armadilha cruel. Em cada canto, bufetes e mutás eram testemunhas silenciosas da tragédia.

A cutia, desprezada na cratera, estava cercada por cachorros que se aproximavam lentamente. Seus olhos refletiam o medo e a resignação de quem sabe que o fim está próximo. Um vento leve soprou, como se a própria floresta suspirasse de tristeza. A cutia deu um último olhar para a mata espessa, onde tantas vezes correu livre. E, com um suspiro final, ela feneceu.

Naquele momento, um canto deprimido ecoou pela mata da Trilha Encantada. A dor da cutia ressoou entre as árvores, tocando o coração de cada criatura que ali vivia. Era mais que um lamento; era uma denúncia silenciosa das armadilhas que maculavam aquele santuário natural. Curupira, o guardião mítico da floresta, estava revoltado. Sentia-se traído pela presença humana que violava suas terras sagradas com armadilhas mortais. Seus olhos, normalmente cheios de sabedoria e calma, agora brilhavam com uma fúria contida. Ele sabia que precisava agir para proteger seus domínios, para evitar que mais vidas fossem ceifadas de forma tão cruel.

Enquanto a floresta chorava a perda da cutia, Curupira tramava sua vingança. Usaria seu poder para confundir os caçadores, desviando-os de seus caminhos e guiando-os para longe da Trilha Encantada. A floresta, sob sua proteção, renasceria, livre das armadilhas e da crueldade. Os animais, sentindo a presença de Curupira, voltaram às suas atividades, mas não sem antes prestar uma última homenagem à cutia. Macacos balançaram suavemente as folhas das árvores, cobras deslizaram silenciosamente pelo chão, e pássaros cantaram uma melodia triste, como uma despedida final.

A Trilha Encantada, envolta em mistério e magia, era um lugar onde cada ser vivia em harmonia com a natureza. E, embora a morte da cutia tenha sido uma tragédia, também serviu como um lembrete do delicado equilíbrio que todos ali mantinham. O sacrifício da cutia não seria em vão, pois despertou a ira de Curupira e reforçou a união dos habitantes da mata.

Com o tempo, as armadilhas desapareceriam, e a Trilha Encantada voltaria a ser um refúgio seguro. Curupira continuaria a vigiar, garantindo que a paz e a harmonia reinassem. E as histórias de valentia e sacrifício passariam de geração em geração, mantendo viva a memória da cutia e a luta pela preservação do Centro da Ilha.  

E assim, a Trilha Encantada seguia seu curso, um lugar onde a vida e a morte, o amor e a perda, se entrelaçavam em uma dança eterna. A floresta, resiliente e poderosa, permaneceria como um testemunho da força e da beleza da natureza, protegida pela sabedoria e pela fúria de seu guardião mítico.

Um vento,
Um suspirar,
Um último olhar na mata espessa,
A cutia fenece.
Um canto deprimido na mata da Trilha Encantada...

Curupira:

- Revoltado!


FIM

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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0045

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