Nº 0941 - O GATO VERDE BYLUS - SÉRIE: HISTÓRIAS FANTÁSTICAS DE MAYANDEUA
Na floresta, o gato verde Bylus perambulava em silêncio entre as sombras. Seu corpo ágil, oculto nas folhagens densas, movia-se com a cautela de quem carrega o peso do medo. O ar, impregnado de mortalidade, respirava com ele, como se a própria mata compartilhasse a angústia de ser perseguida. Seu coração pulsava como tambor frenético, denunciando a vulnerabilidade que partilhava com seus irmãos de quatro patas. Refletia sobre o paradoxo de sua existência: sua carne, que deveria ser sagrada, havia se tornado iguaria, capricho humano disfarçado de tradição. Perguntava-se como a vida de um ser podia ser reduzida a mero pedaço de carne. A perplexidade o consumia, e sua dor se confundia com a de tantos outros que sofriam em silêncio.
A floresta, outrora refúgio exuberante, transformava-se diante de seus olhos. A devastação avançava como onda implacável. Árvores tombavam uma a uma, e a cada queda um pedaço de sua casa desaparecia. O cheiro da madeira recém cortada impregnava o ar, misturando-se ao odor da terra violada. Para Bylus, o homem, que deveria ser guardião da natureza, mostrava-se invasor. A mata se tornava campo de batalha, onde a ânsia por riqueza empunhava as armas mais afiadas. Como poderia um ser tão inteligente ser tão destrutivo? A resposta lhe escapava, mas sabia que a culpa não estava no indivíduo, e sim no sistema que aceitava a morte do verde como preço inevitável do progresso.
Bylus já não era apenas fugitivo. Sua fuga não se limitava a correr entre as árvores e escapar dos caçadores. Ele se tornava pensador, filósofo improvisado que dialogava com a floresta e seus habitantes. Em murmúrios partilhados com os animais, exprimia a dor coletiva diante da destruição iminente. “Por que caçar?”, indagava. “Por que destruir aquilo que nos sustenta?” Sua voz, mesmo em sussurros, era um chamado à reflexão. Desejava que a floresta fosse reconhecida não como recurso, mas como organismo vivo, entidade merecedora de respeito.
Cada passo do gato verde era acompanhado pelo ranger dos galhos partidos, pelo estalar das folhas secas, pelo lamento do vento entre as copas. Cada som testemunhava a dor da mata. O ar, denso e pesado, parecia carregar o suspiro das árvores derrubadas. A floresta não era cenário: era corpo, era vida. Respirava, agonizava e resistia. E Bylus sabia que sua própria existência estava entrelaçada às raízes que o sustentavam. Quando a última árvore tombasse, algo nele também se extinguiria.
O tempo lhe escapava, mas ainda assim caminhava como porta-voz da floresta. Denunciava, em seu silêncio, a insensatez da caça e o absurdo do desmatamento. Suas palavras talvez jamais alcançassem os homens, mas ele as lançava na mata como sementes no solo fértil da consciência. Seus olhos desafiavam o homem a repensar sua relação com o planeta. Sua resistência era discreta, através de diálogos com os outros animais. O legado do gato verde não seria registrado em livros, mas nas folhas que caíam, nas raízes que se entrelaçavam, no sussurro das sombras que se alongavam ao entardecer. Sua crítica permaneceria como apelo à consciência, lembrança do que já se perdera e esperança do que ainda poderia ser salvo. Enquanto caminhava, a floresta, mesmo ferida, permanecia viva. Nos ventos, nas águas correntes, no canto dos pássaros, ecoava sua voz.
Assim, Bylus seguiria entre as árvores, sua presença reverberando nas entranhas da natureza, lembrando ao mundo que, mesmo que a última árvore caísse, a memória da floresta sobreviveria nos corações daqueles que ainda ousassem recordar que um dia o verde foi sagrado, e que nele habitava era a alma viva da própria Terra.
- Assim narrou Primolius para algumas andorinhas no porto.
FIM
Copyright de Britto, 2021
Projeto Literário e Musical Primolius N° 0941