Nº 0932 - SINFONIA DE MARÉS - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
O ar vibra com o sal do mar, um abraço úmido que o envolve no instante em que seus pés (um turista) tocam a areia de Algodoal. A ilha, ele percebe, pulsa no ritmo das ondas, uma melodia que o acolhe. "Mãe de Todas as Mães", sussurram os nativos, e a noite, um véu misterioso que se estende sobre o horizonte, convida seus pensamentos a velejar, como embarcações soltas, rumo aos locais em frente ao mar – dunas mutáveis onde a vida parece se reinventar a cada suave refluxo de ventos de fora.
A lua, velha parceira, inunda a vila com sua prata líquida, revelando os coretos onde, imagina, segredos sussurrados de pescadores e histórias de sereias encontram guarida. A brisa , prenhe de sereno e promessas, aquieta sua alma, como um afago inesperado. As marés, eternas bailarinas das pedras do Boiador, talham não só a paisagem, mas, ele sente, também o destino de quem se entrega a este litoral, a essa dança incessante entre a terra e o mar.
Um raio de memória, talvez emprestado pela própria ilha, evoca tardes de infância desabrochando, maré baixa escancarando um paraíso perdido. Conchas, algas, o frenesi dos caranguejos brancos na areia, fazem os seus orifícios – um microcosmo vibrante que pulsa em seu íntimo. Ele se permite sonhar com a liberdade pura, espraiada na vastidão da praia, como um desejo antigo. A vida, ele pensa, desdobrando-se como o oceano, em um leque de promessas infinitas.
Enquanto caminha, imagina a adolescência irrompendo com a fúria da maré alta, um coração em tempestade. Ondas rebeldes quebrando nas pedras de toda a ilha, desafiam o mundo das correntes de fora. A noite chamando, sedutora, para encontros furtivos à luz do luar, sonhos audaciosos tecidos à beira-mar, com a audácia da juventude. Tempo de amar sem freios, desafiar o script imposto, ultrapassar os limites invisíveis.
A vida adulta, qual maré enchente, trazendo consigo a fartura e o peso da responsabilidade, a beleza e o fardo. A labuta diária, o lar que se expande, os compromissos que se avolumam, como ondas sucessivas. Mas também a alegria dos filhos brincando na areia, risos que ecoam na brisa, a cumplicidade construída à beira-mar, alicerce firme. A certeza de que a jornada, com suas turbulências, vale cada instante, cada gota de sal. Ele ( o turista) vislumbra tudo isso, como se as ondas lhe trouxessem as cenas de uma vida possível.
Hoje, sentindo-se renovado, como se a maré minguante levasse consigo o cansaço da viagem, ele se entrega à calmaria de quem testemunhou a fúria e a bonança, a tempestade e a bonança. Contempla o mar, espelho de tantas histórias, e se permite reconhecer em cada grão de areia, em cada onda que se aproxima e se retira, um ciclo eterno. Os locais em frente ao mar, ele percebe, são palcos de tantas vidas, refletindo a alma de Algodoal, e talvez, a alma que ele ainda busca. As ressacas, quais tempestades existenciais, castigam a paisagem, revelando sua vulnerabilidade. Mas ressaltam, sobretudo, a resiliência, a força silenciosa, a certeza de que o sol sempre rompe as nuvens, tingindo o horizonte de esperança renovada.
E quando a noite se instala e a lua se veste de carimbós. Estes locais em frente ao mar, se entregam ao ritmo hipnótico dos olhares, à magia telúrica de Algodoal, à beleza despojada que emana de cada canto, como um mantra. Porque aqui, (ele) começa a entender, a vida ecoa como o mar: um eterno fluxo e refluxo, um ciclo incessante de começos e despedidas, um espetáculo de rara beleza e constante transformação, uma sinfonia que nunca cessa. Algodoal, ele sente, é um lugar para se encontrar.
- Assim disse um francês!
FIM
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Projeto Literário e Musical Primolius N° 0932