*Nº 0919 - PTERIUS DAS LUZES - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA



(Direto de Mayandeua)

No centro  do concreto e asfalto da grande cidade, onde a pulsação febril da vida urbana se manifesta em buzinas incessantes e passos apressados, habitava um homem cuja presença, sem alarde, capturava a alma. Seu nome verdadeiro, um sussurro perdido do esquecimento, era para as esquinas apenas Pterius — e para os que o investigaram com a sutileza da alma, esse nome vibrava como o vento sussurrado entre folhas secas, um segredo antigo desvendado ao tempo.

Vestido com os retalhos da desatenção, pedaços de papelão que adornavam sua figura quase imaterial, e empunhando um megafone gasto pela voz do tempo, Pterius transmutava o cruzamento mais movimentado em seu palco de palavras e silêncios eloquentes. Sob o beijo impiedoso do sol escaldante ou o véu cinzento da chuva, ele confidenciava aos semáforos, tratando-os como velhos oráculos urbanos, testemunhas mudas da dança humana.

As luzes — vermelha, amarela e verde — eram suas confidentes cromáticas, seus faróis de diálogo. Ele as saudava com uma reverência quase sacra, um afeto transbordante.

Ao vermelho, sua voz grave sentenciava:

— "Você aprisiona os corpos no instante, mas não pode deter a jornada das almas inquietas."

Ao amarelo, um sorriso irônico desabrochava em seus lábios:

— "Você é a hesitação feita cor, a pausa onde o destino flutua. O momento onde tudo pode desmoronar ou renascer."

E ao verde, com um tom ácido, quase um presságio, ele clamava:

— "Você impele os pés à corrida, mas ignora os abismos para onde os corações são levados."

No princípio, motoristas e pedestres o fitavam com a desconfiança que a rotina impõe. Alguns riam, a zombaria um escudo contra o desconforto, outros desviavam o olhar, preferindo a cegueira. Mas ignorar Pterius por completo era uma tarefa impossível. Ele dançava sob as gotas da chuva, declamava ao vento verdades amargas, e por vezes, chorava em silêncio, uma lágrima invisível que caía com a mudança de cor do semáforo.

— "Vocês são escravos da rua!" — bradava, a voz amplificada pelo megafone que convertia sua dor em esperança, sua melancolia em profecia. — "Dos semáforos que ditam o passo, das portas automáticas que se abrem para o nada, dos elevadores que os conduzem a gaiolas verticais. Onde está a liberdade que lhes prometera o amanhã? Quem os convenceu de que a vida se resumia a isso?"

Suas palavras, uma alquimia de poesia melancólica e crítica existencial, permeavam a muralha invisível da rotina, perfurando a indiferença. Ele falava de um lugar além, um território quase mítico ao qual poucos ousavam dar nome. Ele o chamava de Mayandeua.

Mas para Pterius, Mayandeua não era um ponto cartográfico, um mero destino no mapa. Era uma essência. Um refúgio esculpido na alma. Um território onde os sonhos desabrochavam como árvores milenares e o tempo dançava ao ritmo sereno das marés. Lá, as cores emanavam da própria natureza indomável — e não de telas frias ou sinais luminosos.

— "Vocês podem despertar," exclamava, os olhos acesos com uma ternura quase esquecida. — "Há um lugar onde o Sol não queima, mas aquece a alma. Onde o silêncio não oprime, mas liberta os gritos contidos. Lá, filhos do tempo sagrado, podemos nos lembrar de quem somos, longe dos pensamentos neutros que enferrujam a própria essência da alma."

Poucos compreendiam a totalidade de sua mensagem, mas muitos sentiam. Algo em suas palavras reverberava como um sussurro ancestral, uma memória há muito adormecida. Em pouco tempo, as pessoas passaram a procurá-lo. Não mais com a zombaria da ignorância, mas com uma fome primitiva de sentido. Ele se tornara um farol nas manhãs nubladas e nas tardes apressadas, um guia para almas perdidas na urbe.

Às vezes, Pterius ria alto, um riso puro, quase infantil, solto como papel levado pelo vento:

— "Vocês ainda podem rir! Não permitam que lhes roubem o espanto, a maravilha que habita o mundo!"

Rodopiava, dançava como se a gravidade não o prendesse. Mas havia momentos em que cessava subitamente, seus olhos fixos no horizonte de vidro e fumaça, e chorava. Chorava em silêncio, um lamento íntimo.

Alguém, certa vez, ousou perguntar-lhe a razão de suas lágrimas.

Ele respondeu, a voz embargada por uma dor profunda e uma esperança resiliente:

"Choro porque vejo o potencial da liberdade em cada um de vocês... e também vejo as correntes invisíveis que se recusam a romper, amarras forjadas pela ilusão da segurança."

Com o tempo, Pterius transmutou-se em quase lenda. Não tinha um teto sobre a cabeça, mas pertencia à cidade como o próprio vento que sopra entre os prédios. Seu cruzamento não era mais um mero ponto, mas um lugar de peregrinação urbana — onde os corações vinham para ouvir algo que não se apreende nas placas de trânsito ou nas fachadas luminosas.

Então, em um dia, um dia em que o céu parecia sorrir para a cidade, ele desapareceu.

Restou apenas um pedaço de papelão deixado junto ao poste, onde os três sinais coloridos ainda pulsavam, um eco de sua voz:


“Mayandeua está além das luzes.

Além do asfalto que prende os pés.

Mayandeua está onde você decide, 

com a alma, ser livre.”


Desde então, muitos sussurram que Pterius encontrou Mayandeua, cruzando os portais invisíveis. Outros, com a fé dos poetas, creem que ele se dissolveu no próprio vento, tornando-se guia invisível para quem busca algo além da engrenagem frenética da vida urbana.

- Mas uma coisa, imutável e duradoura, permaneceu: sua mensagem.


FIM

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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0919


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