* Nº 0914 - O EPÍLOGO DA MENINICE - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
(Direto de Mayandeua)
Do último beijo... aquele que ficou suspenso no ar, como um eco que nunca se apaga. Entre o portão quebrado e a entrada da igreja, cercada por flores e samambaias, ele adormeceu na piedade dos sonhos dos felizes. Era uma felicidade simples, quase ingênua, mas tão verdadeira quanto o chão de terra batida onde brincavam descalços. Contratempos de sua vida eram apenas os galhos que arranhavam os joelhos ou as pedras que machucavam os pés, e os versos improvisados nos quintais de sua infância eram poemas sem métrica, escritos com o coração pulsando mais forte do que a razão.
E por entre as mãos suadas — mãos que seguravam pipas, bolinhas de gude e bilhetes secretos — ele escreveu nas calçadas de barro e de cimento os segredos de um ator infantil que ele mesmo havia inventado. Num teatro mímico, encenava gestos confusos, trejeitos sentimentais que não entendia direito, mas que o faziam sentir vivo. Veio o frio das chuvas, trazendo consigo o primeiro amor, aquela paixão inocente que parecia durar para sempre. E com ela, a primeira liberdade — a sensação de ser dono do mundo, mesmo que esse mundo coubesse inteiro em um quintal frutífero.
Mas o tempo chegou rasgando a seda de muitos sonhos, dizimando conquistas que pareciam eternas nos quintais de seu tempo. As chuvas de março vieram juntamente com a responsabilidade que ele tanto temia. Hoje, os pés já não estão mais descalços ou furados; eles se sujeitam aos caminhos de outras jornadas, adaptados a uma nova forma de viver. Uma vida sem goiabeiras ou jaqueiras, sem o cheiro doce das mangas maduras ou o som dos passarinhos cantando ao amanhecer.
Assim, ele desistiu de sua infância, enterrando-a junto com as dezenas de beijos dados nos passarinhos que matou — pura emoção da liberdade que só existia naqueles quintais fecundos. Talvez ele seja realmente o epílogo da meninice, uma página final que marca o fim de um capítulo colorido. Nestes momentos fecundos de atrativos vividos, o tempo converteu tudo em memórias curtas, e as palavras que tenta resgatar agora soam puramente mentirosas. Os cheiros já não são os mesmos nos quintais, e a vida parece preocupar-se com outras ações, distantes da simplicidade que um dia conheceu.
A modernidade não conhece estes lugares. Ela avança com suas construções de concreto, seus ruídos mecânicos e sua pressa incessante. Ele enterrou sua alma em algum quintal de sua infância, escondendo todos os seus segredos de uma prematura meninice. Fez isso com a esperança de que alguém, um dia, possa encontrá-la e acalentar este mundo tão cheio de quintais de pedra, tão carente de árvores frutíferas e risadas genuínas.
Ele ainda sente o cheiro das mangueiras e jaqueiras, como se fossem lembranças frescas, recém-colhidas da memória. E as chuvas são as verdadeiras testemunhas deste tempo de serenidade e fecundidade. Velhos quintais coloridos de cheiros permanecem vivos dentro dele, mesmo que o mundo lá fora insista em esquecê-los. Para não se esquecer de sua poesia infantil, desenhou um mapa de tesouro em um caderno. O primeiro sentimento foi "caligrafado" com carinho, introduzindo assim a poesia ao seu primeiro amor: os quintais amazônicos.
No final, resta a certeza de que, mesmo quando o tempo leva embora as coisas mais preciosas, ele não pode apagar completamente o que foi vivido. Os quintais podem ter desaparecido, mas suas raízes continuam profundamente enterradas em sua alma. E enquanto ele puder sentir o cheiro das frutas, ouvir o som da chuva e lembrar dos passarinhos que voavam livres, sabe que uma parte de sua infância ainda vive.
Porque os quintais não são apenas lugares; são estados de espírito, fragmentos de uma época em que o mundo era maior do que parecia e menor do que precisavam para ser felizes.
Assim narrou Primolius para um menino que gostaria de ser adulto....
FIM
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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0914