* Nº 0061 - O RELÓGIO DO CURUPIRA - SÉRIE: CONTOS FANTÁSTICOS DE MAYANDEUA

 


O sol nascia entre as palafitas de Igarapé, a brisa matinal carregando o cheiro adocicado do açaí e o aroma com o cheiro do chá de canela que Dona Maria preparava para o café da manhã com tapioca e queijo de búfala. A vida na vila seguia seu curso tranquilo, embalada pelo murmúrio do rio e pelos cantos dos pássaros que habitavam a mata. Mas a calmaria daquela manhã seria quebrada. O tic-tac compassado do relógio da pequena praça, que sempre ditara o ritmo da vila, silenciou abruptamente, como se a própria mata  prendesse a respiração.

A princípio, os moradores pensaram em um defeito mecânico. Seu Juarez, o relojoeiro da vila, examinou as engrenagens com suas lentes grossas, franzindo a testa em confusão. Mas, com o passar das horas, o silêncio se tornou um presságio. O relógio parado parecia anunciar algo que escapava à compreensão. Velhos pescadores cochichavam sobre um mau agouro, lembrando de antigas lendas sobre espíritos que adormeciam e tempos que se perdiam. Benzedeiras como Vó Benedita invocavam a proteção da Mãe d'Água e dos espíritos da mata , defumando a casa e  a praça com ervas tradicionais em ocasiões como esta.

No terceiro dia de silêncio, quando o sol já se escondia atrás das árvores de buriti e o céu se tingia de urucum, o Curupira surgiu. Veio da mata fechada, com seus pés virados , e um sorriso travesso iluminando seu rosto pintado com jenipapo. A pele do seu corpo rangia com o movimento, e seus olhos brilhavam como brasas. "O tempo adoeceu," disse ele, com a voz rouca como o vento nas árvores. "E só Mayandeua, lá na onde mora o Encantado, pode curá-lo."

O Curupira revelou que o relógio, sem saber, estava conectado ao coração pulsante da floresta maior. Sua pausa era um sintoma de uma doença que se espalhava, causada pelo desmatamento e pela ganância dos homens. A única esperança era levar o relógio em uma grande  nuvem encantada, guiada pelos ventos da floresta, até os Portais de Mayandeua, onde o tempo se dobra e se revela em todas as suas faces. O relógio, como se entendesse as palavras do Curupira, tremeu levemente, demonstrando sua concordância.

Dona Maria, a benzedeira, preparou um amuleto de sementes de açaí e penas de arara para proteger a jornada. Seu Juarez, o relojoeiro, abençoou o relógio com água benta do rio.  O Curupira, com o relógio cuidadosamente posicionado no centro da  nuvem-embarcação, conduziu-a para dentro da escuridão da floresta, guiado pela luz fraca das estrelas e pelo som dos tambores que Vó Benedita tocava na praça.

Mayandeua era um labirinto de portais, cada um guardando segredos ancestrais e desafiando a percepção do tempo. O primeiro portal,  mostrou ao relógio a força da água que moldou a Amazônia ao longo de milênios, o ciclo infinito de cheias e vazantes, a importância da preservação. A cada portal, o relógio sentia a sabedoria ancestral pulsando em seu interior. Compreendeu que o tempo não era apenas uma sequência de horas, mas um ciclo de vida, morte e renascimento, intrinsecamente ligado à natureza e à cultura daquela terra-mar . Encontrou com a Princesa, que o alertou sobre a ganância dos homens, com o Mapinguari, que o ensinou a força dos manguezais, e com a Matinta Pereira, que o avisou sobre os perigos de esquecer as tradições.

No último portal, o relógio viu o nascimento do mundo, a explosão de cores e sons, a força da vida que brotava da terra e do mar.  Entendeu que sua missão era mais do que marcar o tempo, era proteger a memória de sua vila distante e inspirar as pessoas a viver em harmonia com a natureza.

Ao retornar para Igarapé, o relógio voltou a funcionar, mas seu tic-tac agora soava como um carimbó suave, um convite à dança da vida. As horas eram marcadas com o ritmo do tambor, e cada toque era um lembrete da importância de valorizar o presente e proteger o futuro. Os moradores, inspirados pela jornada do relógio, passaram a valorizar a sabedoria dos mais velhos, a cuidar da mata, a plantar mudas de açaí e a celebrar a cultura local com festas e danças.

O Curupira desapareceu, deixando para trás apenas o eco de sua risada e a lembrança de sua importante missão. Mas sua presença permaneceu viva nas histórias contadas à beira do rio, no aroma das ervas usadas pelas benzedeiras e no tic-tac compassado do relógio, que agora pulsava em harmonia com o coração da Amazônia, lembrando a todos que o tempo, na verdade, é a própria vida. E essa vida precisa ser cuidada, respeitada e vivida em plena conexão com a natureza e a cultura que a sustentam. Sempre!

FIM

Copyright de Britto, 2020
Projeto Literário e Musical Primolius N° 0061

Mensagens populares