* Nº 0065 - BOLAS DE MEIA - CRÔNICAS DE MAYANDEUA




(DIRETO DE MAYANDEUA)

Era no terreiro que a magia acontecia. Um simples retângulo de terra batida que, aos olhos daqueles meninos, se transformava num Maracanã improvisado sob o céu aberto. O sol castigava inclemente, enquanto os garotos cortavam o ar com seus corpos ágeis, deixando rastros de poeira que subiam como fantasmas terrosos. A bola — esse tesouro feito de meias velhas enroladas com barbante — saltava caprichosa entre eles, desobedecendo às leis da física com seu formato irregular.

Zé era o atacante desajeitado. Queria ser artilheiro, mas seus pés pareciam ter vontade própria, tropeçando um no outro nos momentos decisivos. Antônio Francisco, que todos chamavam de Tonho, reinava na lateral como um pequeno Roberto Carlos em formação, os cabelos grudados na testa molhada de suor. Marcos cuidava do gol feito com chinelos velhos. Mauro era o zagueirão que não perdoava, enquanto Catita, o menor de todos, era o que mais brilhava.

Catita parecia ter nascido com a bola colada nos pés. Magricela, de pernas finas como varetas, executava dribles impossíveis que deixavam os outros parados, como estátuas de barro. "Olha o Pelé mirim!", gritavam, quando ele passava serpenteando entre os adversários. A poeira levantada pelos seus movimentos formava uma luz ao seu redor, como se a própria natureza aplaudisse aquele talento bruto e magrelo.

O jogo só terminava quando as mães começavam a chamar do portão ou quando o sol, cansado de assistir àquela algazarra, começava a se esconder atrás das casas. Foi assim por anos, dia após dia, uma rotina sagrada que ninguém ousava quebrar. As consequências vinham na forma de unhas pretas, joelhos ralados e roupas que jamais voltariam a ser brancas. Os pés calejados eram medalhas de honra, carregadas com orgulho por cada um deles.

Anos depois, o homem olha para o filho jogando videogame de futebol na sala climatizada. O menino comemora um gol virtual com gritos contidos, enquanto seus dedos limpos deslizam sobre os botões do controle. O homem sorri, melancolicamente. Na estante, uma foto amarelada mostra cinco meninos cobertos de poeira, sorrisos largos revelando dentes brancos em rostos encardidos.

O terreiro já não existe — deu lugar a um condomínio de prédios altos. As bolas de meia foram esquecidas nas gavetas do tempo. Mas dentro dele, guardado como um tesouro, o eco daqueles gritos ainda ressoa. Um eco que nenhuma tecnologia consegue reproduzir, feito da mais pura alegria que só a infância livre pode proporcionar.  Assim aquele homem chamado um dia de Catita `as vezes, quando fecha os olhos, ele ainda sente o gosto da poeira na boca, o calor do sol na pele, e por um instante fugaz, volta a ser apenas um menino correndo descalço atrás de uma bola imperfeita num campo de sonhos perfeitos.

- Fases desta vida de dribles!


FIM

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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0065


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