* Nº 0063 - AS FLORES DE MARYLDE - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
Marylde, senhora de fios prateados que dançavam na valsa do tempo, possuía olhos que cintilavam com a profundidade de décadas silenciadas. Em seu modesto apartamento, tecia um refúgio particular, um universo isolado da efervescência mundana. Seu lar, singelo e despojado, ecoava sua existência quieta e interiorizada. As paredes, desnudas de adornos, acolhiam apenas uma coleção de flores de plástico, dispostas com esmero. Para olhares alheios, meros objetos inertes; para Marylde, cada pétala era um fragmento de história, uma memória sussurrada, a promessa espectral do que poderia ter germinado.
Seus dias escorriam na contemplação nostálgica daquelas flores inanimadas, imaginando-as vívidas e perfumadas, sentinelas silenciosas de sonhos olvidados e anseios soterrados. O aroma doce, fantasma na atmosfera, inundava seu coração com um conforto espectral. As flores permaneciam, leais e imutáveis, enquanto o tempo, implacável, levava consigo rostos e juras. Na quietude do seu domínio, eram suas únicas confidentes, ecos tênues de um amor perdido, jamais extinto.
Um dia, enquanto Marylde se aninhava em sua poltrona, revisitando as páginas de um livro já decorado pela memória, uma carta singular rompeu a monotonia. Distinta das missivas de contas ou dos convites sociais que ela invariavelmente declinava, ostentava um selo desbotado e uma caligrafia familiar. Ryber, seu antigo amor, um pescador de Mayandeua , retornara à cidade e ansiava por revê-la.
O nome de Ryber, há tanto tempo emudecido no santuário do seu ser, refulgiu como uma brasa teimosa, que Marylde tentara em vão extinguir. A carta, carregada de saudades e arrependimentos tardios, entreabriu uma fresta para o passado adormecido. Marylde, habituada à solidão como a uma veste confortável, sentiu um tremor despertar em suas entranhas. Havia um quê de misterioso e imprevisível naquele retorno, uma tênue esperança. Com o coração em compasso acelerado, um turbilhão de excitação e apreensão agitando seu íntimo, Marylde decidiu aprontar-se para o reencontro. Sabia que o tempo havia cinzelado novas linhas em sua face. Dedicou-se a cuidar de suas flores de plástico, como quem prepara o solo para um renascimento. Limpou cada pétala com a delicadeza de um afeto antigo, trocou a areia dos vasos, e purificou o ambiente com uma meticulosidade quase ritualística, resgatando um fragmento do passado que, embora tingido de dor, merecia ser rememorado.
Vestiu sua melhor indumentária, um vestido azul-celeste que reservava para ocasiões especiais. Aquele tecido trazia consigo a lembrança de uma mulher mais jovem, uma alma que, ao lado de Ryber em Mayandeua, ousava crer em promessas sussurradas e futuros entrelaçados. Observou seu reflexo no espelho, vislumbrando não apenas a mulher presente, mas também a sombra daquela que fora antes de sua partida. Uma mulher que ainda portava os ecos do amor que a abandonara, e as flores de plástico que agora preenchiam o vazio deixado por outros afetos esvaídos.
Quando Ryber cruzou a sala, seu olhar varreu o apartamento de Marylde, detendo-se por um instante nas flores de plástico que salpicavam os vasos. Uma sombra de desconforto toldou brevemente sua expressão. Aquelas flores, que para ela eram confidentes silenciosas, pareciam para ele um símbolo de estagnação, um enigma indecifrável.
— Marylde, o que é isso? — indagou, a surpresa e uma nota de desaprovação tangíveis em sua voz.
Ela, embora atingida pela reação dele, respondeu com uma serenidade inabalável. Sabia que suas flores, apesar de sua artificialidade, eram o fruto de todos aqueles anos de sua existência. Para ela, representavam a resiliência silenciosa, a preservação de uma beleza, algo que jamais se perdera, mesmo com o súbito adeus daquele senhor.
— São minhas flores. Elas me fazem companhia — proferiu, com um olhar plácido.
Uma tensão invisível pairou entre eles. Ryber, confrontado com as flores de plástico, não conseguia apreender o significado visceral que elas possuíam para Marylde. Ele, com seu espírito ainda carregado de ímpeto e aventura do mar, propôs que ela abandonasse tudo, que recomeçassem em um horizonte distante, alheios às lembranças e às flores que ela tanto acalentava. Mas Marylde não estava disposta a renegar o que construíra, o que, em sua visão, bastava para preencher a sua vida.
— Eu não posso — respondeu ela, a voz suave, mas carregada de uma determinação que ele não podia decifrar.
Um silêncio denso se estabeleceu entre eles por um breve instante. Ryber, com os olhos marejados de uma frustração silenciosa, finalmente se ergueu. Ele percebeu que a mulher que habitara suas memórias não estava mais ali. A figura diante dele era agora uma estranha, alguém que se entregara ao consolo das flores de plástico e à placidez de uma vida recolhida. Com um último olhar fugaz, ele se retirou, e o som seco do fechar da porta reverberou pela sala, preenchendo o vácuo da sua ausência.
Sozinha novamente, Marylde aninhou-se no sofá, abraçando com ternura uma das flores de plástico. O perfume doce que emanava dela a envolvia em um conforto, e uma paz silente aquietou seu peito. Ela sabia da natureza inerte daquelas flores, mas no santuário de sua solitude, elas eram tudo o que necessitava. Fiéis, constantes e, de alguma forma, um espelho de sua própria tenacidade. Então, cerrou os olhos e mergulhou nas profundezas de suas lembranças, cultivando um jardim onde o amor ainda florescia em cores perenes.
Com o passar dos dias, Marylde permitiu que a figura de Ryber se esvaísse nas dunas da memória. Suas lembranças tornaram-se borrões indistintos, e as flores de plástico, agora intrínsecas à sua existência, continuaram a ser suas companheiras silenciosas. Ela criou um jardim imaginário, onde as flores de plástico desabrochavam em tonalidades vibrantes e exalavam fragrâncias tão vívidas quanto as de qualquer flor viva. Aquele jardim não era apenas um refúgio, mas um emblema da sua capacidade resiliente de reconstruir seu universo interior, de encontrar beleza e afeto, mesmo naquilo que os outros julgavam destituído de vida.
Na quietude acolhedora de seu apartamento, Marylde permitiu-se um sorriso sereno. As flores, embora artificiais, eram suas aliadas leais, e, no âmago do seu ser, o amor jamais havia se extinguido. Ele residia ali, preservado entre as pétalas coloridas, na tênue fronteira entre o real e o imaginário. E, ao adormecer envolvida pela doçura fantasma de suas flores, Marylde sabia que sua jornada, apesar das perdas e desilusões, continuaria adornada de amor – o amor que ela cultivara silenciosamente, dia após dia, com suas singelas flores de plástico.
- E assim aquela dama ainda está por lá na cidade grande!
- Sua maior lembrança agora, o vento de Maya...
FIM
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Projeto Literário e Musical Primolius N° 0063