* Nº 0062 - A LUA QUE CAIU - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
Direto de Mayandeua)
Um véu cinzento, puxado por mãos invisíveis, engoliu o céu com uma velocidade assustadora. O vento, prenhe de um murmúrio inquietante, irrompeu com força incomum, chicoteando as árvores e varrendo as folhas secas em um frenético bailado pelas ruas. A cidade morena parecia hesitante, sua identidade habitual obscurecida pela atmosfera opressora. Apressados, os transeuntes cruzavam os caminhos, seus olhos carregando um brilho úmido e avermelhado, talvez pela densa fumaça do ar, talvez por uma angústia mais profunda, indecifrável.
Na Avenida Almirante Barroso, os carros, outrora ágeis, deslizavam lentos como um formigueiro perplexo. A escuridão se adensava, deglutindo as modernas pirâmides que riscavam o horizonte. Os edifícios altos, antes símbolos de pujança, eram engolidos pela súbita penumbra. O sorriso celeste, a suave claridade que acalmava as almas, desvaneceu. E com ele, um sopro levou consigo fragmentos de esperança, sussurros de sonhos, a leveza de muitas promessas que iam pelas sarjetas, enfim, as águas ali eram soberanas.
Subitamente, a luz vacilou e se extinguiu. Não era apenas a ausência do sol ou da lua, mas uma palpável interrupção no ritmo natural, um breve silêncio no pulsar do mundo belenense. A natureza parecia exalar uma fúria contida, um lembrete sussurrado de sua magnitude insuperável. As buzinas soavam em ecos dissonantes, um protesto contra o tempo incerto que pairava sobre a cidade. O próprio compasso da vida parecia ter tropeçado, deixando a todos em uma suspensão ansiosa.
(A lua de alguma forma definhou.)
E então, sem ilusão, a chuva despencou. Não era uma chuva comum, mas um pranto denso e melancólico, carregando o peso de lágrimas de uma cidade em desenvolvimento . Ela banhava os ombros curvados da metrópole, encharcando vestes, umedecendo rostos e lavando as marcas de inúmeros passos nas calçadas. Era uma chuva que não purificava, mas impregnava de razões em dizer o tempo que realmente a Natureza ali, mesmo entre prédios, continuava soberana.
A cidade, antes vibrante, parecia agora com muito frio, em compasso de espera. Os postes de luz tremulavam, frágeis faróis contra a escuridão invasora, exaustos sob o peso da tempestade. Os edifícios imponentes pareciam inclinar-se no vácuo de metáforas que buscavam abrigo sob o manto sombrio das nuvens e mangueiras em um gesto silencioso de de submissão.
Nos ombros cansados dos habitantes, a chuva persistia, mesclando-se às lágrimas silenciosas de alguns, imperceptíveis para outros. Era uma cena de uma beleza triste, quase um poema visual da vulnerabilidade urbana. A alma da cidade parecia exposta, sensível, aos olhos daqueles que a habitavam. A lua, o eterno guia noturno, estava perdida, talvez em um exílio permanente nos braços da distante Mayandeua.
Contudo, mesmo na sombra densa, mesmo na tristeza da chuva incessante, persistia uma beleza singular. Uma beleza visceralmente autêntica. Era a força da natureza em sua forma mais elementar, despojada de artifícios, sem maquiagens. Era a resiliência do povo das águas, que, mesmo confrontada pela adversidade, seguia em frente, vivendo, sonhando em meio à tempestade. (Feito pescador)
Ao final, resta apenas o murmúrio constante da chuva, tangendo telhados e vidraças, como um lamento suave. Resta o vazio onde antes a lua reinava, mas também a tênue esperança de um renascimento em outra noite, sob outro céu. Enquanto a lua não chega, a cidade continua a respirar, a pulsar, a persistir, mesmo com a fadiga de sua cor cinza. E assim a vida tece sua trama na dança entre a sombra e a claridade de mais uma noite chuvosa na capital das mangueiras molhadas.
- E assim foi e ainda é!
FIM
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Projeto Literário e Musical Primolius N° 0062