* N° 0904 - ENCONTRO DE MARÉS - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA

 


Homero deixou o olhar vagar pelo ambiente, sentindo que aquele momento transcendia uma simples entrevista de emprego. A sala silenciosa, preenchida apenas pelo som da respiração contida e do tique-taque de um relógio distante, abrigava mais do que candidatas. Cada uma das três mulheres ali representava a essência da vida: perdas, superações e renascimentos.  

Diante de si, Maria, uma mulher de traços cansados, mas com um brilho resistente no olhar, iniciou sua fala. Sua voz, embora serena, carregava um misto de dor e orgulho. Descreveu a devastadora perda do marido, um evento inesperado que a forçou a ser o pilar de uma casa cheia de sonhos interrompidos. Trabalhou como costureira, faxineira e cozinheira, cada função carregando uma parcela da esperança de garantir um futuro melhor para seus dois filhos. Os sacrifícios moldaram não apenas seu corpo, mas também sua alma, tornando-a mais forte do que jamais imaginara ser.  

Em seguida, Ana, uma jovem repleta de energia e ambição, tomou a palavra. Seus olhos brilhavam, não com ingenuidade, mas com a esperança de quem aprendeu cedo a sonhar alto, mesmo quando o horizonte parecia inalcançável. Ela contou sobre a infância marcada por privações e a educação esparsa em uma escola pública do interior. Estudava à luz de velas e fazia pão caseiro para vender com a mãe nas feiras locais. Mesmo assim, não se deixou abater. Passou em uma universidade federal, onde enfrentou preconceitos e dificuldades financeiras, mas se destacou, conquistando respeito e abrindo caminhos. Sua trajetória era um testemunho de que a adversidade poderia ser uma escada para o sucesso.  

Por fim, Clara, a última candidata, começou a falar com uma serenidade que só quem conheceu a dor profunda poderia exalar. Uma cicatriz, levemente visível em sua mão direita, testemunhava a violência de um acidente que quase lhe tirou a vida anos antes. Ela relatou, sem amargura, o processo longo e doloroso de recuperação física e emocional. Após meses de fisioterapia, reaprendeu a andar e a viver, descobrindo, na espiritualidade, uma nova forma de enxergar o mundo. Seu caminho de superação não foi apenas físico, mas também espiritual. Clara encontrou força ao acolher suas fragilidades e renascer em meio à adversidade, mostrando que a verdadeira vitória é se manter de pé, mesmo quando a vida insiste em nos derrubar.  

Homero escutava cada uma dessas histórias como quem revisita capítulos esquecidos de um livro querido. Elas traziam à tona lembranças de sua mãe, uma mulher simples e batalhadora, que sempre acreditara na força que habita em cada ser humano. Essas histórias ecoavam como fragmentos da sua própria biografia, onde desafios e conquistas coexistiam como partes de um mesmo destino. Após alguns instantes de reflexão silenciosa, Homero ergueu os olhos, pousando-os com firmeza em Clara. Havia uma calma profunda nela, uma força silenciosa que ele reconhecia e valorizava.  

— Clara — disse ele com a voz firme e, ao mesmo tempo, acolhedora —, é você quem buscamos. Sua jornada nos ensina que há beleza na resiliência e luz mesmo nos momentos mais sombrios. Será uma honra tê-la em nossa equipe.  Os olhos de Clara se encheram de lágrimas, mas seu sorriso permaneceu sereno, como uma flor que desabrocha após a tempestade. Homero sentiu, naquele instante, que sua decisão ia além de preencher uma vaga de trabalho. Ele estava, de alguma forma, honrando a memória de sua mãe e a luta de tantas mulheres que, como Clara, enfrentam as tormentas da vida sem perder a fé em dias melhores.  E assim, ao final daquele encontro, Homero entendeu que não estava apenas selecionando um novo membro para a equipe, mas celebrando a força invisível que move o mundo: a capacidade humana de se reinventar, de encontrar coragem no desespero e de transformar dores em novas oportunidades.

Após longos anos, a amizade e parceria entre Homero e Clara cresceram, e o vínculo que se formou entre eles transcendeu o ambiente de trabalho. A conexão de vida e superação os aproximou ainda mais, e juntos, eles decidiram compartilhar não apenas sonhos profissionais, mas também pessoais. Hoje, Homero e Clara vivem lado a lado, dividindo a simplicidade de uma nova vida na ilha de Mayandeua. Lá, entre os ventos das dunas e as marés serenas, encontram na presença um do outro o lar que sempre buscaram, reforçando o laço de amor e companheirismo que, sem que percebessem, começou naquele dia em que Clara entrou pela primeira vez na sala silenciosa da entrevista.

- Relatos do povo de Mayandeua! 


FIM

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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0904

 

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