*Nº 0882 - FURO DE MAYANDEUA - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
O horizonte parecia pulsar com uma energia mística, enquanto o céu e a terra se misturavam em um abraço silencioso. Um pássaro solitário cortava o céu, voando baixo, como se quisesse tocar a terra sagrada dos manguezais esquecidos. Estes manguezais, testemunhas silenciosas do tempo, guardiões da perfeição e do mistério que envolvem essa terra paraense, permaneciam intocados, reverberando uma serenidade ancestral. Suas raízes, tão profundas quanto o próprio solo que as nutria, contavam histórias, entrelaçadas com o ciclo eterno da vida e da morte, onde cada folha caída era um capítulo que se encerrava para dar início a outro. (Marés do mundo)
As formas contorcidas das árvores e os galhos que se estendiam como mãos, em prece desenhavam no céu uma caligrafia invisível, um poema não escrito para Homens. Esse poema não se limitava às palavras simbólicas , mas vibrava em cada gota de água, em cada sopro de vento, em cada olhar silencioso que cruzava aquele horizonte. Era uma ode às águas que moldavam vidas e destinos, onde o curso dos rios ditava o ritmo da existência, e a correnteza carregava não apenas sedimentos, mas sonhos, esperanças e memórias.
As palavras, agora, ecoavam como suspiros em canoas que navegavam pelos rios, lagos e furos, enquanto as raízes das árvores brotavam das margens, firmes e resilientes, alimentando-se da fertilidade que as águas ofereciam generosamente. Era como se a terra e a água dialogassem em uma linguagem antiga, que só os corações mais atentos conseguiam entender. Os peixes celebravam a abundância da vida submersa, saltando nas águas como dançarinos de um balé amazônico, enquanto o ar se enchia com o aroma de sementes que germinavam nas ribanceiras. Nos furos, onde a luz mal penetrava, os mistérios se entrelaçavam, criando um mosaico de histórias e realidades que só os mais atentos poderiam ver.
Cada detalhe da paisagem contava uma história. As mãos calejadas dos pescadores, exaustas pela labuta diária, traduziam em seus gestos o cansaço de quem desafia o destino todos os dias. Mas, mesmo no cansaço, havia poesia, escrita para as águas como uma canção sem fim, que fluía com a mesma naturalidade com que os rios se movem. Cada gota de suor era uma palavra, cada esforço um verso, e cada noite sob as estrelas um capítulo dessa ode paraense, que não se limitava às palavras, mas à essência da própria existência.
Ele transformava cada momento em uma homenagem silenciosa à terra e às águas que sustentavam sua vida e a de muitos. As ondas levavam suas preces, e mesmo quando se perdiam no vasto rio, elas permaneciam gravadas nas almas daqueles que conheciam o valor dessas terras e dessas águas. O ciclo de vida e morte, de esperança e esforço, era celebrado em cada gesto, em cada rede lançada ao rio, em cada peixe trazido de volta à terra.
As águas não eram apenas fonte de sustento, mas também de mistério e renovação. Ali, onde o tempo parecia se dissolver nas marés, o espírito se encontrava em comunhão com algo maior, algo que transcendia o cotidiano e se enraizava nas profundezas da alma humana. O homem e o menino caminhavam lado a lado, unidos pelo destino, mas também pela promessa do desconhecido. E as águas continuavam a fluir, incansáveis, moldando o passado, o presente e o futuro com sua dança eterna.
- Mãos destas águas sagradas! Faziam parte de um ciclo que jamais poderia ser interrompido.
- Mayandeua!
FIM
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Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0882