* Nº 0869 - OUTRO MUNDO DE CAMBOINHA - SÉRIE: CONTOS FANTÁSTICOS DE MAYANDEUA
Os dias passavam lentos e tranquilamente, mas as noites traziam consigo um mistério que Kymus não conseguia resistir. Deitado em sua rede, balançando suavemente com o som das ondas, ele ouvia o cantar dos bacuraus. Esses pássaros noturnos, com seu canto profundo e inquietante, carregavam lendas antigas, e Kymus sabia que quando o bacurau cantava depois da meia-noite, algo mais estava em movimento.
Era em noites assim que a figura enigmática de Matinta se tornava mais do que uma história sussurrada ao redor de fogueiras. Diziam que Matinta, a velha bruxa que caminhava entre os vivos e os mortos, trazia presságios e misticismos para quem a encontrava. Kymus, com seu coração jovem e destemido, sentia uma atração quase irresistível por aquele mistério. Ele não tinha medo; ao contrário, sentia-se compelido a compreender, a se conectar com o que estava além do que seus olhos podiam ver.
Numa dessas noites, quando o vento carregava um frio incomum para fevereiro e os bacuraus estavam especialmente agitados, Kymus sentiu algo diferente no ar. Levantou-se da rede, deixando que o vento guiasse seus passos. Caminhou pela Trilha Encantada, seus sentidos atentos a cada som, cada movimento. Era como se o próprio mato de Camboinha respirasse ao seu redor, sussurrando segredos.
Ao chegar a uma clareira iluminada apenas pela luz pálida da lua, ele parou. Ali, no centro da clareira, uma figura encapuzada balançava suavemente de um lado para o outro, como se estivesse em comunhão com a própria terra. Kymus não precisou perguntar quem era; ele sabia que estava diante de Matinta.
A velha bruxa levantou o olhar, e Kymus sentiu um frio percorrer sua espinha, mas não de medo. Era algo mais profundo, como se todo o conhecimento dos ancestrais estivesse contido naquele olhar. Matinta sorriu, um sorriso que era ao mesmo tempo amável e aterrorizante.
"Você busca respostas, menino?", sua voz era um sussurro que parecia ecoar por toda a clareira.
Kymus assentiu, incapaz de desviar o olhar.
"Então, ouça", ela disse, estendendo a mão. O vento parou, e por um momento, o mundo inteiro pareceu silenciar.
Matinta começou a cantar, um cântico antigo que falava de tempos passados, de vidas vividas e perdidas. Kymus sentiu-se parte de algo muito maior, como se estivesse conectado a todas as almas que já haviam caminhado por aquele solo. E no final, quando o último verso se desfez no ar, ele soube que nunca mais seria o mesmo.
Quando a noite terminou e o sol começou a despontar, Kymus retornou à sua rede. Mas ele sabia que, a partir daquele momento, carregava consigo um conhecimento antigo, um pedaço de Matinta, e que sua ligação com a terra de Camboinha se tornara mais profunda e inquebrantável.
E assim, nas tardes de fevereiro, enquanto os outros ouviam apenas o cantar dos pássaros, Kymus ouvia muito mais. Ele ouvia as vozes da terra, os segredos do vento e, de vez em quando, o sussurro distante de Matinta, lembrando-o do que havia aprendido naquela noite, sob a lua e o olhar atento dos bacuraus.
- Encantos de Camboinha!
FIM
Copyright de Britto, 2022
Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0869