* Nº 0683 - REINO ENCANTADO DAS CAPIVARAS - SÉRIE: CONTOS FANTÁSTICOS DE MAYANDEUA





Na ilha de Mayandeua, há muitos costumes e lendas transmitidos de geração em geração, e entre os mais respeitados está o temor das horas mortas, especialmente o horário do meio-dia. Durante esse período, segundo os mais velhos, o vento cessa, os pássaros se calam e a natureza parece suspensa em um estranho silêncio. Os anciãos da ilha acreditam que é nesse exato momento que o destino de muitos é decidido: aqueles que estão doentes ou se recuperam, ou partem para a morada eterna. A natureza, em seu estado de quietude, parece segurar o fôlego, como se estivesse à espera de algo.

Antônio, um homem de trinta anos, com seis filhos e o sétimo a caminho, não dava ouvidos aos conselhos da mãe. Criado em meio às lendas da ilha, ele nunca respeitou as advertências sobre o perigo das visagens e espíritos que rondavam as matas e os mangues. Para ele, o mundo físico e concreto era tudo o que importava. Mesmo quando sua mãe, preocupada, o aconselhava a nunca entrar na mata ao meio-dia, alertando-o sobre o "demônio do meio-dia" que visitava os mangues e florestas, Antônio permanecia cético e irreverente. A sua coragem era conhecida por todos na vila, muitos até o admiravam, mas outros diziam que ele não respeitava o que vinha da natureza.

Naquela segunda-feira, abrindo a Semana Santa, Antônio decidiu partir para a mata com o objetivo de caçar. A maré estava calma, e o céu limpo, o que parecia um bom presságio. Com seu remo firme, ele navegou até a região do Seco, onde esperava encontrar a caça que tanto queria. Enquanto remava, a voz de sua mãe ecoava em sua mente, repetindo os avisos de sempre: “O demônio do meio-dia anda pelas matas, respeite as horas!”. Mas Antônio, como de costume, ignorou. Ele estava decidido a prover alimento para sua numerosa família e não via perigo algum em sua jornada.

Ao ancorar sua canoa no furo, Antônio pegou seus instrumentos: um facão, uma corda, um pouco de farinha e uma garrafa d'água. O calor já começava a se intensificar, e ele sabia que estava próximo do horário que sua mãe tanto mencionava. Ao atravessar o mangue, chegou a uma parte densa da mata e, por um momento, parou para descansar. Enquanto bebia água, algo incomum chamou sua atenção. Entre as árvores, viu um grupo de macacos que olhavam fixamente para o céu. Ao seguir o olhar dos animais, Antônio percebeu que havia uma grande quantidade de pássaros – guarás, bigodes, bem-te-vis e outros – todos imóveis, como se estivessem congelados no tempo. O silêncio era absoluto.

Uma sensação incômoda passou por seu corpo, lembrando-o mais uma vez das palavras de sua mãe. Era o horário das horas mortas. Mas antes que pudesse refletir mais, um som alto, vindo da outra margem da mata, o fez desviar sua atenção. Curioso, como sempre, ele deixou o local onde os animais pareciam estar em transe e foi investigar. Rapidamente atravessou o mangue e embarcou novamente na canoa, remando em direção ao som. Ao chegar ao outro lado, desembarcou e notou algo estranho: a mata parecia estar em chamas, mas não havia sinal de fumaça. Antônio, porém, não hesitou. Empunhando o facão e a espingarda, ele avançou em direção ao fenômeno misterioso.

De repente, à sua frente, um vulto humano apareceu, assustando-o. Mas antes que pudesse reagir, a figura desapareceu e, em seu lugar, uma capivara gigantesca surgiu, correndo mata adentro. Animado pela possibilidade de uma boa caça, Antônio a seguiu com determinação. Mas algo estranho continuava a acontecer: sempre que ele estava prestes a alcançar a capivara, o vulto humano reaparecia, apenas para desaparecer novamente, deixando-o confuso. E, mais uma vez, a capivara cruzava seu caminho, sempre o atraindo mais para o interior da mata. 

Era como se a própria floresta estivesse brincando com ele. Mas Antônio, obstinado, continuou. Até que, finalmente, ele parou. Uma estranha sensação de estar perdido, ou "mundiado", como diziam os antigos, tomou conta de seu corpo. Olhando ao redor, ele percebeu que não sabia mais onde estava. E, naquele exato momento, os mesmos macacos que ele vira antes reapareceram. Aos poucos, todos os animais que antes estavam em transe surgiram ao redor dele, como se estivessem tentando lhe dar um aviso.

Então, a capivara apareceu novamente, mas dessa vez, ela não fugiu. Ficou parada, olhando diretamente para ele. Antônio sentiu como se aquele olhar estivesse carregado de informações que ele não podia compreender totalmente, mas algo nele mudou. Antes que pudesse reagir, um estrondo ecoou pela mata e, quando ele olhou novamente, a capivara havia desaparecido, deixando apenas suas pegadas no chão.

Atordoado e desorientado, Antônio vagou pela floresta por mais duas horas, completamente perdido em seus pensamentos. Quando finalmente conseguiu retornar à sua canoa, o sol já estava se pondo. Exausto, ele chegou em casa e dormiu profundamente, como se estivesse sob um feitiço. Na manhã seguinte, ainda se sentindo "moído", ouviu as palavras de sua mãe:

— Olha, Tonho, teu amigo que caçou contigo ontem trouxe uma banda da capivara que vocês pegaram. A bicha deu uns 20 quilos. E ele disse também que, da próxima vez, tu tem que levar uns presentes pro Curupira.

Antônio ficou em silêncio. Ele sabia que ninguém caçara com ele naquela segunda-feira. A capivara, misteriosamente, havia encontrado o caminho até sua casa, mas algo mais profundo havia acontecido naquela mata. Ele, um homem que nunca temera visagens ou espíritos, agora começava a entender que as forças da natureza que sua mãe tanto mencionava eram reais. E que, talvez, o "demônio do meio-dia" fosse apenas uma das muitas manifestações desses mistérios que habitavam a ilha de Mayandeua.

( Ali mesmo Antônio desmaiou!)

( Coisas da ilha)

FIM

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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0683

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