* Nº 0651 - O LAGO IMAGINÁRIO - SÉRIE: CONTOS FANTÁSTICOS DE MAYANDEUA



Nas águas da Princesa, onde a maré canta sua eterna melodia, o caboclo encontrava sua rotina de vida e sustento. Com o terçado firme nas mãos e um cacuri sempre prestes a encher, ele era o guardião silencioso da caiçara, onde o mar e o homem se entendiam sem palavras. Ali, as garças e os guarás pintavam o céu com movimentos graciosos, enquanto os peixes e os siris dançavam no cenário líquido.  

Às vezes, por bondade ou descuido, o caboclo deixava um bagrinho escapar do curral. Mas sua atenção era consumida pelo trabalho incansável. A vida seguia assim, em harmonia com o ciclo do tempo, até que algo diferente, algo fora do comum, mudou a história.  

Naquele dia, o céu mudou de humor. Uma chuva repentina desceu do horizonte, mas o caboclo, absorto no ofício, só percebeu quando era tarde. Com o cacuri ainda vazio, ele se pôs a caminho, cruzando o mangue com passos lentos e seguros, até chegar à outra margem.  

Foi então que viu.  

Lá, sobre a areia úmida e iluminada por relâmpagos, uma criatura jamais imaginada. Uma sereia. Sua beleza era trágica e inquietante. Cabelos negros escorriam como algas escuras, olhos brilhavam como brasas vivas. Mas havia algo errado. A sereia estava ferida, seu corpo cintilante manchado de sangue.  

O caboclo, homem simples e forte, ficou paralisado. Sentiu um calafrio subir pela espinha, como se as águas  tivessem invadido sua alma.  Era como se o tempo tivesse parado. O vento, a chuva, o canto das aves... tudo cessou. Só os olhos da sereia o encaravam, flamejantes e misteriosos.  

E então o instinto falou mais alto.  

Com uma mistura de medo e desespero, o caboclo largou tudo. Os paneiros cheios de peixe, o cacuri e até a razão foram abandonados na pressa de fugir. Ele correu sem olhar para trás, montou em seu casquinho e remou com a força de quem foge não só do perigo, mas de algo muito maior: do inexplicável.  

Dizem que, ao amanhecer, quando o caboclo criou coragem para voltar, encontrou a caiçara arrastada pela maré. Nenhum sinal da sereia, apenas a vaga sensação de que algo profundo e enigmático havia acontecido. Na verdade aquele lugar nunca mais encheu. E assim, o nativo tornou-se protagonista de uma história contada à beira do fogo, em noites onde o mistério e a magia se misturam à vida dos homens daquele mar.  

Que os ventos da Princesa nunca deixem esse conto se perder nas marés do esquecimento.

 - E assim foi e é!


FIM


© Copyright de Britto, 2020 – Pocket Zine

Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0651


Mensagens populares