*Nº 0173 - BENZEDEIRAS - SÉRIE: CONTOS DE MAYANDEUA
Nas serenas margens de uma comunidade ribeirinha, histórias antigas ecoavam como melodias do passado, imergindo os habitantes em um mundo encantado. Essas narrativas, tecidas entre risos e sussurros, compunham um tecido dinâmico de tradição e mistério. A crença nos "bichos do fundo" e nos "encantados" fluía como as próprias correntezas do rio, envolvendo as pessoas em um misticismo profundo. Gerações transmitiam lendas sobre criaturas mágicas, feiticeiras e entidades ocultas que habitavam as águas e a densa mata ao redor.
Entre todas as entidades enigmáticas, uma era particularmente temida: o boto. Dizia-se que essa criatura era especialmente perigosa para as mulheres menstruadas, atraindo-as de forma invisível e envolvendo-as em encantamentos desconhecidos. Na comunidade, acreditava-se que era responsabilidade exclusiva da mulher que se aventurasse no rio durante a menstruação atrair esses seres misteriosos, especialmente se guardasse esse segredo para si. Alguns viam a menarca como o momento em que as mulheres deveriam se afastar de lugares tradicionalmente considerados masculinos, como o mar, o porto e os rios. Elas estavam sujeitas aos encantados, enquanto o território dos homens se via ameaçado por uma força incontrolável.
Foi assim que surgiu a história de uma jovem que, inadvertidamente, colocou a vida de todos em risco ao decidir tomar banho no rio sem informar ninguém sobre sua menstruação. Seus gritos e risadas foram suficientes para desencadear o encantamento. Os mais velhos murmuravam sobre a "encantaria", essa força enigmática capaz de perturbar a vida dos ribeirinhos que viviam tão próximos do rio e das matas densas. Diante da situação, a comunidade sabia que precisava buscar ajuda de uma benzedeira — alguém com conhecimentos ancestrais capaz de afastar o boto e outros encantados.
A benzedeira, parente de alguns moradores, era uma mulher dotada de dons especiais e detentora dos rituais secretos necessários para lidar com forças ocultas. Com galhos de plantas sagradas e banhos preparados com ervas medicinais, ela conduziu cerimônias cuidadosas enquanto todos observavam com respeito e temor. Sua feição serena e dedicação durante os rituais finalmente conseguiram aliviar a tensão e desfazer o encantamento que pairava sobre a comunidade.
Após esse enfrentamento, os moradores mantiveram uma vigília ao redor da fogueira. Ali, compartilharam histórias sobre as forças misteriosas que governavam os locais ribeirinhos — entidades que os conectavam à natureza, mas que também exigiam respeito. Conforme os meses passaram, a vida na comunidade seguiu seu curso, com os habitantes navegando pelas águas do rio e explorando as matas em busca de sustento. A jovem que havia atraído o encantamento aprendeu uma lição valiosa sobre a importância de respeitar as antigas tradições. Ela compreendeu que as histórias e lendas não eram apenas fantasias, mas sim um legado de sabedoria e respeito pela natureza.
Nessas circunstâncias, a benzedeira continuou desempenhando um papel crucial na comunidade, afastando os encantados e neutralizando suas influências sempre que necessário. Seus conhecimentos ancestrais eram um farol de esperança em meio às incertezas da vida nesses lugares distantes. Sempre que acionada, ela guiava os moradores em seu relacionamento com as forças misteriosas que habitam as águas e matas.
Assim, a comunidade seguiu seu caminho, vivendo em harmonia com as forças mágicas da natureza, respeitando os encantados e mantendo viva a tradição transmitida de geração em geração por seus ancestrais. Nas rodas de conversa, mais uma história de encontros com o encantamento do boto era compartilhada ao redor da fogueira, sob o céu estrelado da grande Amazônia.
Primolius, um dos anciãos, relatou com uma voz cheia de reverência e nostalgia, lembrando a todos que a magia da Amazônia está presente em cada folha, cada gota de água e cada sussurro do vento. Era ali, naquela conexão profunda com a natureza, que a chama das tradições e do respeito permanecia viva, iluminando o caminho das futuras gerações.
FIM
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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0173