* Nº 0447 - VERDE: CIDADE-EXPECTATIVA - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
(Carta Semanal - Mayandeua)
Gyteus era o nome que ecoava pelos ventos e correntezas do mundo, um coletor de sonhos esquecidos nas águas — aqueles que se dissolviam nos rios, sumiam nas marés ou eram arrastados para dentro dos bueiros escuros. Ele caminhava entre o concreto e as margens lamacentas como um espectro silencioso, alguém cuja existência parecia pertencer tanto ao real quanto ao imaginário. Seu trabalho não era apenas recolher os resíduos das vidas humanas diluídos na água; ele buscava algo mais profundo: fragmentos de esperanças perdidas, desejos truncados e memórias submersas.
Seu rosto carregava a expressão de quem já vira demais, mas também de quem ainda insistia em olhar. Os cabelos longos e grisalhos, sempre úmidos como se tivessem acabado de emergir de um rio, caíam-lhe sobre os ombros. Sua pele exibia tons acinzentados, reflexo da névoa constante que pairava sobre sua alma. Nos olhos, uma mistura de melancolia e curiosidade crítica, como se estivesse sempre avaliando, julgando, questionando o que via. Gyteus era um crítico involuntário do mundo humano, incapaz de ignorar suas contradições e falhas. Ele observava cada detalhe com uma precisão quase dolorosa, dissecando os gestos apressados das pessoas, os lixos jogados sem cuidado nas ruas, as promessas vazias escritas em cartazes publicitários e até mesmo os sorrisos falsos trocados por desconhecidos.
A habilidade peculiar de Gyteus ia além do simples ato de coletar sonhos. Ele conseguia sentir o peso emocional contido em cada gota d'água que tocava. Ao mergulhar as mãos nas águas poluídas, podia distinguir histórias individuais: o lamento de uma criança que nunca teve seu brinquedo consertado, o grito sufocado de uma mulher que abandonou seus próprios sonhos para cuidar dos outros, a frustração de um homem que passou anos perseguindo metas impostas pela sociedade. Esses fragmentos eram guardados em sua mente, formando um mosaico triste e complexo da condição humana.
Mas havia algo mais: Gyteus guardava dentro de si uma saudade inquietante, uma nostalgia que pulsava como uma ferida aberta. Era a lembrança de Mayandeua, uma ilha distante onde tudo parecia diferente. Não era apenas um lugar físico, mas um estado de espírito, um refúgio onírico onde as águas eram encantadas, os arco-íris eram verdadeiros e a maioria das pessoas viviam em harmonia com a natureza. Durante o dia, enquanto realizava seu trabalho solitário nas cidades cinzentas, ele mal conseguia pensar nisso. Mas à noite, quando finalmente descansava sob o céu, Mayandeua invadia seus sonhos com uma intensidade avassaladora.
Nos sonhos, ele caminhava pelas praias da ilha, sentindo o frescor do vento salgado acariciar seu rosto. As mangueiros sempre ao ritmo das marés, e os pássaros cantavam as suas melodias da Terra Mãe. Ali, Gyteus encontrava paz. Ali, ele podia esquecer, nem que fosse por algumas horas, o peso das histórias que colecionava durante o dia. Mayandeua era o oposto do mundo que ele conhecia, um contraponto perfeito para a decadência urbana e a indiferença humana.
No entanto, ao despertar, Gyteus era tomado por uma sensação amarga. A ilha dos sonhos parecia tão distante, tão irrealizável, que às vezes ele se perguntava se ela realmente existia ou se era apenas uma criação de sua mente cansada. Talvez fosse essa dualidade — entre o sonho e a realidade, entre a beleza e a destruição — que o tornava tão crítico em relação ao mundo. Ele sabia que as pessoas poderiam fazer melhor, que elas tinham o potencial de transformar seus ambientes, mas escolhiam fechar os olhos para a dor que causavam.
Depois de um longo dia de trabalho, Gyteus costumava caminhar pelas margens dos rios urbanos, observando os reflexos das luzes artificiais tremeluzirem na superfície oleosa da água. Ele pensava em todas as histórias que havia coletado e nas que ainda estavam por vir. E, inevitavelmente, seus pensamentos retornavam a Mayandeua. Ele imaginava como seria voltar lá, não apenas em sonhos, mas na vida real. Será que algum dia encontraria o caminho? Ou será que aquela ilha era apenas uma metáfora para algo maior, uma utopia impossível de alcançar?
Enquanto isso, ele continuava seu trabalho, coletando sonhos e criticando o mundo com olhos que viam além das aparências. Cada gota d'água que tocava era uma oportunidade de entender melhor a humanidade, de confrontar suas cicatrizes e talvez, quem sabe, de encontrar um vislumbre de redenção. Porque, no fundo, Gyteus acreditava — ou queria acreditar — que, assim como os sonhos podem ser recuperados das águas, o mundo também pode ser transformado.
- Assim Primolius pensou!
FIM
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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0447