* Nº 0437 - O CIRCO DE MUITAS VIDAS - SÉRIE: CONTOS DA TERRA-MAR (AMAZÔNIA)

 




Literina sempre teve os olhos grandes e expressivos, como duas luas cheias que refletiam tanto a sensibilidade quanto a inquietação de sua alma. Filha do dono do grande Circo "Lonas Abertas", sua infância foi vivida entre estradas poeirentas e noites estreladas, acompanhada por uma trupe nômade que percorria cidades do Sul do Brasil. Seus pais, apesar das dificuldades, mantinham o espetáculo como forma de sustento e preservação da magia circense. Seu pai, um contador de histórias encantador, era seu herói e mentor. Entre rodas de chimarrão e dias de trabalho árduo, ele lhe ensinava os segredos da vida sob a lona, plantando em seu coração a paixão pela arte e pela narrativa.

Com cabelos curtos e rebeldes como uma flor do campo, Literina cresceu aprendendo a montar e desmontar lonas, cuidar dos animais e participar das apresentações. A vida no circo, entretanto, também a expôs à fome, ao cansaço e à saudade, moldando uma jovem resiliente, mas marcada por desilusões. Aos dezoito anos, enfrentou a maior perda de sua vida quando seu pai foi atacado pelos leões em um trágico acidente. De repente, ela se viu diante da imensa responsabilidade de comandar o circo sozinha. Apesar de seus esforços por meses, as dívidas, as deserções e a morte dos animais a forçaram a tomar uma decisão dolorosa. Vendeu o que restava do circo e, com o pouco dinheiro arrecadado, comprou um pequeno apartamento no centro de Porto Alegre, onde esperava encontrar um recomeço.

Nos anos que se seguiram, Literina dedicou-se a resolver os problemas legais do antigo circo e começou a escrever contos inspirados na vida nômade que tanto a marcara. Determinada a transformar sua paixão pela arte em algo concreto, ingressou na universidade e, aos vinte e seis anos, formou-se em Artes. Com um diploma na mão e uma vontade incontrolável de explorar o mundo, partiu em uma viagem pelo interior da Argentina e do Uruguai, levando apenas uma mochila nas costas. Foi no Uruguai que ela encontrou uma nova trupe circense e, com eles, reviveu a magia de sua infância. Por alguns anos, reaprendeu a alegria do palco e da vida sob a lona, mas a saudade do pai e as memórias do passado nunca deixaram de pesar. A melancolia a envolveu, e Literina decidiu afastar-se mais uma vez.

Ao retornar ao Rio Grande do Sul, trouxe consigo um carro carregado de malas e recordações, incluindo a velha mochila de couro que ainda guardava seus contos e memórias da vida nômade. O peso de anos de buscas incessantes começou a cobrar seu preço. Literina enfrentou noites insones, dependendo de medicamentos para conseguir algum descanso. O cansaço da alma parecia maior do que sua força para continuar. Os amigos, aos poucos, perderam contato, e sua presença tornou-se cada vez mais rara. Até que, um dia, surgiu a notícia de que Literina havia sido vista em uma embarcação navegando pelo rio Amazonas.

Diziam que ela havia se apaixonado por um pescador e decidido viver em uma pequena ilha nas proximidades de Mayandeua. Longe do barulho e da correria do mundo moderno, encontrou um novo lar entre os rios e a floresta. Lá, construiu uma vida simples e plena, cuidando dos dois filhos que teve com o pescador e navegando os rios em busca de novas histórias. Sua velha mochila continuava a acompanhá-la, agora repleta de contos, memórias e pequenos tesouros do passado. Seus olhos, redondos e brilhantes como luas cheias, refletiam uma paz que antes parecia impossível de alcançar.

Na simplicidade da nova vida, Literina descobriu que o verdadeiro espetáculo não estava sob a lona, mas nas pequenas alegrias e na liberdade de ser quem realmente era. Assim, entre os segredos da floresta e o brilho dos rios, encontrou o lar que sempre procurou, encerrando sua busca com a serenidade de quem finalmente compreendeu que a magia está na essência daquilo que somos e nas conexões que criamos ao longo do caminho.

FIM

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Projeto Musical e Literário Primolius Nº  0437 

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