* Nº 0403 - DO OUTRO LADO DO RIO - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA

 




Crônica de uma outra terra (Direto de Mayandeua)  

Era uma noite fria nas serras gaúchas, onde o chão áspero parecia cortar os pés descalços de quem ousava caminhar por ele. Mas os caminhantes, forjados pelo tempo e pela vida rude daquele lugar, não se intimidavam. Seguiam firmes, sentindo a vibração ancestral da terra que guardava em si as forças naturais, como um coração pulsante sob seus passos. Homens e animais compartilhavam aquele espaço vasto e silencioso, unidos pelo mesmo destino: viver e sobreviver naquela paisagem bucólica e imponente.

As horas escorriam lentamente, como água em um riacho  entre pedras. Os corações, antes acelerados pelo cansaço do dia, agora se acalmavam ao ritmo da natureza. Nas proximidades do campo, onde morava uma gauchinha de olhos claros como o céu de inverno, tudo era paz e serenidade. A noite, envolta em silêncio, era iluminada pela lua crescente, que derramava sua luz prateada sobre o céu estrelado e a terra generosa.

Mas nem tudo era calmaria. O vento que descia dos Andes soprava com força, agredindo os corpos queimados pelo sol inclemente. As mãos calejadas, marcadas pelo trabalho árduo, erguiam-se em preces silenciosas, pedindo proteção para o dia que viria, cheio de novas tarefas e orações. No entanto, a vida seguia seu ciclo. Em algum canto daquele mundo sem fim, as crias se multiplicavam, renovando as vidas e as esperanças. Era como se a própria terra respirasse através deles, perpetuando sua essência.

Homens e mulheres reuniam-se em volta do fogo crepitante, tomando chimarrão amargo e abraçando suas tradições. Conversavam em voz baixa, falando de coisas simples, mas carregadas de significado. Tinham fé e devoção pelo seu modo de vida, pela sua cultura e, acima de tudo, pela sua terra. Cada palavra pronunciada era um eco das gerações que vieram antes, uma herança que se perpetuava no calor das brasas e no sabor do mate.

Foi então que um homem, de barba grisalha e olhos profundos como poços antigos, mudou o rumo da prosa mansa. Ele começou a cantar uma canção antiga, cujas raízes vinham de terras distantes, lá do Oriente. Era uma melodia diferente, exótica, que falava de amor e guerra, de deuses e heróis. Sua voz grave e rouca ecoou pelo campo, espalhando-se como um chamado ancestral. O som daquela música parecia despertar algo adormecido na alma daquelas pessoas. O campo inteiro se agitou, tomado por uma curiosidade reverente.

As aves noturnas, perturbadas pelo canto, rasgaram o véu da noite com suas asas, voando em círculos como se profetizassem o destino daqueles viventes. Eram criaturas fortes e valentes, mas também sensíveis e poéticas, movendo-se na mata como dançarinos invisíveis, criando visões mágicas para quem tivesse olhos atentos para observá-las. Lá no alto, o céu encontrava o chão em perfeita harmonia, formando paisagens que pareciam saídas de um sonho. Aquelas imagens acalmavam os olhos cansados e suavizavam as pernas doloridas pela lida de tantos dias.

No campo aberto, onde os sonhos se misturavam à realidade, fandangos e chimarritas alegravam os corações apaixonados. Era a terra da fertilidade, onde cada gesto, cada palavra, cada nota musical era uma celebração da vida. Ali, o amor florescia com a mesma intensidade que as flores brotavam na primavera. Era a terra da ação, onde homens e mulheres trabalhavam juntos, lado a lado, construindo seu futuro com as próprias mãos.

E na atmosfera da noite, que subia devagar como uma maré tranquila, muitas prosas ainda rolavam ao clarão daquela lua crescente. O minuano aumentava, trazendo consigo o frio cortante e a saudade de tempos que já não voltavam. Mas o mate continuava a rodar, roncando dentro das cuias, aquecendo as almas e os corpos daquela geração de homens e mulheres do outro lado do rio. Eram filhos da terra, herdeiros de uma história que nunca terminaria, pois estava escrita nas estrelas e gravada nos ventos que sopravam eternamente pelas serras gaúchas.

FIM 

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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0403



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