* Nº 0362 - MESTRES ANUNS - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA



No céu azul do Verão Norte, próximo aos imponentes cajueiros da Camboinha, o Anum-preto cortou o ar com suas asas negras e brilhantes. Voando ligeiro, ele desenhou cambalhotas no vento enquanto soltava seu característico pio agudo, anunciando sua presença de maneira súbita e inconfundível. Era como se o próprio céu tivesse despertado para dar espaço a esse pássaro enigmático, cuja figura marcante pairava entre mito e realidade.

Para os caboclos das redondezas, o Anum-preto não era apenas mais um habitante das matas e campos; era um símbolo carregado de significados sombrios. Sua chegada, acompanhada por aquele canto estridente, ecoava nas mentes supersticiosas como um presságio de desgraça e feitiçaria. Diziam que ele era amigo íntimo da morte, uma espécie de mensageiro das trevas que rondava as vidas dos homens simples do campo. Os vaqueiros, ao ouvirem seu chamado, baixavam os olhos e apressavam o passo, evitando cruzar seu caminho. Para eles, o Anum-preto era sinônimo de maus presságios, um espectro alado que trazia consigo histórias de tragédias e perdas.

Nas colônias e capoeiras, onde o tempo parecia fluir em ritmos mais lentos e ancestrais, o Anum-preto recebia outro nome: "chuva". Seus ovos, curiosamente chamados de "vixe-Maria", eram considerados tão desastrosos quanto o próprio pássaro. Nem mesmo as crianças ousavam atirá-los com pedras, temendo atrair algum tipo de maldição invisível. O Anum-preto, astuto e provocador, parecia saber disso. Ele costumava esperar nas beiradas dos caminhos rurais, observando os desavisados que passavam, desconjurando-os com sua presença insolente. Suas travessuras alimentavam lendas centenárias, histórias contadas à luz de lamparinas em noites de tempestade, quando o vento soprava forte e as sombras dançavam nas paredes de barro.

Quando o temporal começava a se aproximar, anunciado pelo primeiro farfalhar das folhas e pela mudança na cor do céu, o Anum-preto reunia-se em bandos barulhentos. Eles pulavam de galho em galho, piando incessantemente, como se estivessem preparando alguma grande encenação para o crepúsculo. Observavam os passantes com olhos atentos, como pequenos juízes silvestres julgando cada movimento humano. Diziam os antigos que, se o Anum-preto cantasse à meia-noite, seu canto seria um aviso claro e terrível: alguém próximo estava prestes a partir desta vida. Essa crença fazia com que muitos moradores das vilas próximas dormissem inquietos durante as noites de tempestade, sempre atentos ao menor som vindo das árvores.

No cajueiro, soberano da paisagem local, o Anum-preto reinava absoluto. Com seu porte robusto e seu bico afiado, ele espantava as aves menores que tentavam se aproximar dos de seus alimentos característicos. Ali, ele encontrava refúgio e sustento: matava a sede nas poças formadas nos troncos retorcidos e descansava sob a sombra generosa das folhas. Cada gesto seu parecia protagonizar uma nova aventura, uma nova travessura que logo se transformava em lenda. As histórias sobre suas artimanhas eram contadas e recontadas nas rodas de prosa, ganhando novos detalhes a cada narrativa. Para alguns, ele era o guardião oculto da natureza; para outros, um espírito travesso que zombava dos humanos.

Diante da ventania que se intensificava, o Anum-preto permanecia imóvel, como uma estátua esculpida pelo próprio vento. Enquanto tudo ao seu redor balançava e tremia, ele parecia ancorado à terra, indiferente à força dos elementos. Havia quem visse nele algo além de um simples pássaro. Para esses, ele era quase um advogado dos homens simples, um defensor silencioso das cercas de arame e dos campos abertos. Embora fosse considerado feio por muitos, com suas penas negras reluzindo de maneira quase metálica, o Anum-preto possuía uma fala própria, um jeito peculiar de existir que parecia brotar do silêncio das terras áridas e das plantações.

"Estes vivem brincando nas tardes de Maya!", diziam os mais velhos, referindo-se aos Anuns-pretos que, mesmo em meio às adversidades da natureza, pareciam levar uma vida leve e despreocupada. Para eles, o pássaro era um paradoxo vivo: ao mesmo tempo ameaçador e fascinante, assustador e indispensável. Era como se o Anum-preto fosse parte integrante místico que envolvia aquelas terras, uma peça essencial na tapeçaria de lendas e superstições que definiam a relação entre os homens e o mundo natural.

E assim, entre o mito e a realidade, o Anum-preto e o branco continuava a voar, a cantar e a protagonizar suas travessuras. Seu voo era uma ponte entre o visível e o invisível, entre o medo e a admiração, entre o passado ancestral e o presente eterno. Nas tardes de verão, quando o sol pintava o horizonte de tons vibrantes, ele ainda podia ser visto saltitando entre os galhos dos cajueiros, lembrando a todos que, mesmo nos lugares mais simples, há mistérios que jamais serão completamente compreendidos.

- Dezenas deles no meu quintal! 

(Pulam de galho em galho)


FIM 


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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0362


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