* Nº 0021 - UM HOMEM CHAMADO ALFREDO - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA



(Direto de Mayandeua) 

Alfredo sofria de amnésia. Enquanto trabalhava nas docas, arquitetava um mundo que, inexplicavelmente, refletia seu pensamento de homem intelectual do mar. Quando o conheci, ele tinha 45 anos. Era um homem de talhe mediano, com um sorriso impecável e a força de um estivador dedicado — um descendente da mistura lusitana com os nossos índios.

No Ver-o-Peso, Alfredo adotou uma vida de andarilho, aceitando suas dificuldades como parte da existência na cidade grande. Consciente ou não, ele sabia distinguir o real do surreal nas vielas e becos daquele mundo onde poucos o aceitavam. Contudo, para ele, aquele era o seu paraíso. E, em sua intimidade, tinha como companheira a Baía do Guajará.

Antes de viver nas docas, Alfredo havia sofrido um acidente automobilístico ao sair de um baile de carnaval no centro urbano de Belém. Essa história foi narrada por ele mesmo no tradicional Bar do Parque, onde, em longas tragadas de cerveja, entrelacei as ideias e os fatos daquele homem íntegro e surpreendentemente feliz com a vida que levava naquela parte da cidade paraense. Na ocasião do acidente, Alfredo tinha 35 anos. Foi submetido a várias intervenções hospitalares e permaneceu em coma por meses. Sua família, sobrecarregada pelas dívidas hospitalares, o deixou à deriva, transferindo-o para um hospital público enquanto cuidava de outras responsabilidades comerciais da família. Assim, Alfredo ficou preso durante 14 meses nessa prisão sem muros.

Após sua fragilidade corporal, veio o milagre dos avanços médicos. Um dia, Alfredo despertou de seu estado de inércia hospitalar. Ao acordar, arriscou-se a brigar com toda a equipe médica e, movido por instinto, fugiu quase nu do hospital. Assim, chegou ao seu novo mundo, transformando-se em um andarilho pelas principais ruas da capital. Seu ofício era pedir esmolas em uma calçada em frente aos Correios da Avenida Presidente Vargas. Durante um ano, percorreu praças e coretos da cidade. Mas, em suas andanças, descobriu um ambiente que mudaria sua vida: o cais. Seu refúgio seria o Ver-o-Peso.

Ali, começou a rememorar flashes de sua vida. Seus avós eram praianos, e naquele cenário passou a registrar suas experiências através da poesia, sempre em diálogo com a afamada Baía, a quem chamava carinhosamente de Dona “Guaja”. Todas as manhãs, às seis horas, Alfredo já estava sentado no pequeno trapiche. Em suas mãos, papéis de papelão e um lápis. Tornou-se conhecido pelo pseudônimo de “O peixeiro das palavras”, título que assinava em seus escritos diários:

Poema 1.345  

“Umidade no vento, sereno...  
Um céu cinza chegou nesta manhã.  
Vieram os barcos, os homens do comércio.  
O mensageiro sol, não chegou.  
Umidade nos Homens,  
Cheiro de peixes podres no ar...  
Vieram os lixeiros e os amigos urubus...  
Nuvens de chuva chegando apressadas e mudas pela poluição...  
Em algum ambiente...  
Um canoeiro perdido.”  
PP

Alfredo habitava ali mesmo. Após desabafar em versos, saía para explorar o cais em busca de cargas de peixe ou qualquer produto que surgisse. Pelas horas mortas, recebia alguns trocados para o almoço. Às duas da tarde, já estava instalado no trapiche, degustando um prato de peixe com farinha. Após a refeição, voltava a rabiscar:

Poema 1.346
  
“A Dona ‘Guaja’ parece abrasadora quando a evidência se desfaz...  
Pequenas ondas não sincronizadas navegam em meu destino.  
A vida é discreta quando se está sentado...  
Olhos alongados para o vento...  
O sol às vezes não chega devido às nuvens carregadas.  
O Tempo é o aconchego para os Homens do cais.  
Olhos mais distantes...  
Saudade de alguma coisa no além-mundo destas águas.  
E neste deprimido badalar de motores,  
Consolidam as estranhezas destas águas lacrimosas.  
Às vezes cheirosas...  
Há trinta metros daqui as putas deliciam-se nos copos...  
E os estivadores adormecem entre seus peitos de leite de rosas.  
Neste canto, olhos ausentes e vermelhos...  
Os poetas às vezes têm receio da morte.”  
PP  

Uma manhã, Alfredo sentiu-se mais envelhecido e exausto em seu leito de papelão. O vento soprava forte, e ele pegou o lápis com certa repugnância, tentando esboçar uma casa, um sol, algumas árvores. Surpreendentemente, chorou pela primeira vez em seu mundo de marolas. Mesmo abatido, seguiu para o cais, e às cinco da tarde já estava recolhido em sua cama improvisada, começando a escrever. Ao completar as linhas no papelão, olhou longamente para a velha amiga e lançou todos os seus papéis na baía, exceto o último texto, escrito em um pedaço de papel de pão:

"Todos duram, amam e mentem. Abençoada seja a puberdade dos trovadores que amparam com austeridade a realidade encoberta por muitos. Sou um homem que ainda sonha, tenho passos brandos, porém rudes ao tempo indigesto por entre as marés de minha vida. Talvez eu seja imortal nestas águas. Lá no horizonte encontram-se os bel-prazeres e o descanso de minhas roupagens humanas... No agora, a fadiga chegou, e a ficção neste momento é distinta. Encontrei-me novamente. É preciso que o extermínio não viva. Bruto seria se o acovardamento dos homens fossem ondas de desânimo duradouro. Hoje restabeleço ao meu íntimo a cadência adequada de velhas batidas ao peito e, subitamente, sinto-me diferente. Fui um missionário neste trapiche por longos anos. Aceitei a oscilação dos ventos, relatei o curso destas águas em meus papéis... E neste andamento, restituo tuas magníficas energias. Receba, Dona ‘Guaja’, estas linhas oblíquas, rasuradas e incompreensíveis para muitos desta doca. Agradeço-te por nunca negares teu leito e por concentrar a figura insana de centenas de homens que te molestam diariamente. Cheguei aprisionado neste cais. Os urubus e outros pássaros doutrinaram-me em meu voo por entre teus ventos de chuva, que às vezes vêm de tão longe... Vi os contrabandos chegarem e os astros incandescentes que caíram em teu leito. Contemplei a morte através da violência de muitos que por aqui conheci, e ao chão reconheci que a vida, para muitos destes, não representa quase nada. Eu vi, eu vi! Fizestes a solidão sorrir para mim. Talvez não houvesse outro caminho para seguir. Ampararei em meus sentimentos com tua ausência e serei aventuroso em te dizer que te amava. Lanço ao teu seio todos os meus mistérios de demente. Dou de presente aos teus mangais os meus vocábulos francos. Perdão, amiga, a hora chegou... Vou para a casa que outrora meus avós foram cativos... Mayandeua me espera!"

Assim, Alfredo entrou em minha vida literária.


FIM

Copyright de Britto, 2020
Projeto Literário e Musical Primolius Nº 0021

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