* Nº 0123 - ÁGUAS DE CAMBOINHA - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
Lâminas de luz rompem a madrugada, atravessando as frestas do barraco simples e desenhando feixes dourados nas paredes. A claridade suave acaricia o rosto marcado do pescador, que aguarda paciente o momento exato. O sol começa a subir no horizonte, anunciando o início de mais uma jornada, e o tempo, como um rio em movimento, se transforma. É hora de pescar.
O pescador, experiente e precavido, fricciona os olhos, espantando os últimos vestígios de sono. Lentamente, ele se levanta da rede que lhe embala os sonhos, como um escravo fiel destes lugares tão simétricos, onde cada detalhe parece ecoar séculos de repetição e resiliência. As lamparinas ainda tremulam, soltando seu último suspiro de luz, enquanto ele ajusta o chapéu na cabeça e preenche o urinol com calma, numa rotina que parece eterna, quase imutável.
O tempo mudou... Ele abre a janela e lança o olhar sobre as canoas enfileiradas à beira do rio, sentinelas silenciosas da pesca que está por começar. Um gole de café frio desce como um ritual de boas-vindas ao dia, e o pescador toma o remo entalhado, sentindo a madeira firme em suas mãos calejadas pelo trabalho árduo. O rio o espera, com suas marés e caminhos misteriosos, sempre pronto para testar sua paciência e coragem.
Ele navega pelas margens, onde se aglomeram tralhotos e outras pequenas criaturas do rio, testemunhas silenciosas da passagem do caboclo. Ele boceja, observando a paisagem que vai ficando para trás, como um monólogo visual. O tempo virou novamente, e as cabanas à margem do rio vão desaparecendo do seu campo de visão, recuando com as remadas firmes e precisas que abrem caminho pelas águas.
O tempo virou. Sua vida, protegida por uma força superior, é acompanhada por aqueles astros vivos – o sol, a lua, as estrelas – que parecem rezar junto com ele, em silêncio, em cada jornada. E lá estão Boiuna e Uiara, lendas antigas que o pescador acredita ver, guiando e protegendo sua pequena canoa que agora parece dançar no rio-mar, em um balanço suave e ritmado, como se o próprio rio estivesse em oração.
O pescador camboense, apaixonado por essas águas que lhe sustentam, devaneia sobre Mariazinha, sua lembrança doce e quente, aquecendo-o mais do que o café frio. Ele pensa nela enquanto navega, acompanhando o ritmo das marés, e sente o coração ser levado pelas ondas. Mariazinha é o fio invisível que o conecta à terra firme, mesmo quando está perdido na vastidão do rio.
E assim, o tempo vai sempre virando, transformando, enquanto o pescador segue, em sua dança com o rio, entre o amor e a jornada. Cada remada é um verso, cada onda é uma nota, e sua vida se entrelaça com a melodia eterna das águas. O rio é seu companheiro, seu desafio, sua oração. E ele sabe que, enquanto o tempo continuar virando, ele estará ali, navegando entre o real e o encantado, protegido pelos astros e pelas lendas que habitam o coração do rio.
Coisas da ilha!
Primolius contou…
FIM
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Projeto Musical e Literário Primolius N° 0123